terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Sempre a direito para Sul

Sul
Por Hélia Correia
"Aquele não era o som da peste, pensou Joan. Não tinha, como têm os lamentos, uma direcção certa; não buscava um efeito contra as portas cerradas do céu e do inferno. Havia um brado, a rouquidão de um esforço. E um emaranhado de rumores que lhe seria fácil ordenar, pegando-lhes nas pontas um a um, isolando as camadas de modo a poder dar-lhes um nome e um motivo. Nada, porém, gerado pela terra costumava merecer-lhe uma atenção.
No seu terraço, olhava para as estrelas. E estava ali faziam tantos anos que nem mesmo o mais velho dos vizinhos se lembrava de o ter visto chegar. Visitavam-no às vezes mancebos de liteira e velhos que tremiam nos seus gibões escarlates. Mas também os peixeiros e mesmo os que viviam nos cantos das ruelas na esperança de um frete ou de um bom roubo trepavam pela escada em caracol que os conduzia até Joan de Sória para que ele decifrasse na vontade dos astros que fortuna aguardava os seus recém-nascidos. Era uma espécie de revolução o facto de um plebeu e até um vadio poderem consultar para os seus filhos os livros de uma ciência que passara de credo a credo e de regime para regime porque a todos servira sem um estremecimento.
O povo amava e alimentava Micer Joan, mas uma coisa e outra às escondidas. Quando, ao raiar do sol, ele se encostava sobre o grande baú que era o seu leito, via poisada no tijolo da braseira uma escudela cheia com as papas de milho e às vezes a cabeça de um peixe a fumegar. Entre as mulheres que o assistiam e as fadas, Joan não encontrava substancial diferença. Mesmo no fim das noites de maior lucidez em que a doce tontura do cansaço era o mais desejado dos prazeres ele encharcava a cara e bocejava, sentava-se a comer com ruidosas exclamações de apreço para as não ofender nos seus desvelos.
Pelo contrário, os nobres queriam-lhe um certo mal pois os desastres de que os avisara haviam quase todos sucedido. E não sabiam se Micer Joan lhes dera a conhecer os seus destinos traçados muito antes de eles nascerem, no início das eras do universo, pelo mão que aprecia e distribui a dor – ou se, com nomeá-los, ele é que os inscrevia numa folha que Deus deixara limpa mas não suficientemente resguardada. A curiosidade e o medo eram, no entanto, mais fortes que essa dúvida e os fidalgos, já que Joan de Sória recusava sair ainda que fosse o rei a convocá-lo, vinham vê-lo na plena luz do dia, sem o menor disfarce, levando à frente os moços que se davam os braços para não escorregarem nas podridões da rua e recolhendo as capas que corriam o risco de lhes ficarem presas nos varandins de tábua, mais baixos do que os ombros de qualquer cavaleiro. Não queriam revelar a repugnância com que se sujeitavam a buscá-lo.
Micer Joan gostava daqueles bairros. E, do seu torreão de adobe e pedra, pairava sobre o peso, a sujidade, as tarefas despóticas dos homens. Mentia um pouco, o menos que podia, somente o necessário para os aliviar quando estavam a ponto de lançar fogo às casas num grande desespero.
Aos ricos, ensinava a mastigar raiz de angélica durante essas viagens em que andavam de um lado para o outro, sempre ao longo dos rios, para fugir à peste. Falava-lhes da pedra-besoar que curava os flagelos se bebida desfeita numa água-rosada, por meio de caniço, pois, se tocasse os dentes os reduzia a pó. Para os lados da Pérsia, dizia, é que as há muitas, no estômago dos bodes. Isto dava-lhes força para se manterem vivos enquanto os emissários iam e regressavam de mãos vazias ou com um seixo verde-escuro na bolsa. No entretanto, os ares desinfectavam-se.
Aos vizinhos, nos dias de maior desconsolo, descrevia um lugar que havia ao sul onde não existia nem morte nem justiça, de modo que podia roubar-se o vinho doce, penetrar num palácio, arrotar e dormir em sedas amarelas sem que daí viesse algum castigo. Está nos astros, dizia, e não tarda já muito, que grandes barcas construídas por uns homens em cujas ventas Deus há-de soprar se metam pelas águas a caminho. E por cima do mar nadarão elas, levando todo aquele que quiser ir. Ah, meus filhos, dizia, em certas noites, quando o vento é quente, um ouvido apurado dá-se conta de como ri a gente dessa terra!
O prior de Ribamar que o receava, porém, não conseguia deixar de frequentá-lo, dava-lhe a entender o que havia de ímpio naquelas descrições. Queria que ele visse o perigo de lhes fornecer sonhos em que a moral falia. Quem sonha não planeja, retorquia Joan. Estai-me vós todos gratos porque lhes levo as ânsias lá para o fim do mundo, onde tudo o que existe é a maré fervente que abre horrendos abismos na sua ebulição. Morrem eles felizes; vós outros, sossegados.
Dizei se é caro o preço à fantasia.
Tudo isso nada era nas noites estreladas, quando Joan enfrentava o aço e a mudez dos corpos luminosos. Então, os sons da terra tinham de produzir-se durante muito tempo, tinham de ir engrossando e trepando as paredes como um aluvião até que ele os ouvisse e desviasse os olhos.
Eram os duradouros gritos da multidão – porque as pequenas queixas de um assalto, um apunhalamento debaixo das arcadas ou mesmo os empurrões mortais dos bêbados, tudo se desfazia aos rés da rua e não durava mais do que uma prece.
O som daquela noite tinha, pois, densidade e persistência bastantes para que Joan de Sória começasse a sentir-se levemente intrigado.
Era o som de um trabalho e ele imaginou um saque feito às pressas por cima de cadáveres. Viu que o céu recuava e os seus desenhos se ocultavam por trás de uma mancha de luz. Era uma luz de tochas que ondulava e parecia levantar o casario. Joan pôs pelos ombros o seu velho tabardo, num cuidado excessivo porque estava calor.
Nem as moscas dormiam, pensou Joan enquanto patinhava por sobre a imundície. Os despejos, a urina e as fermentações brilhavam como pedras de carbúnculo. Só na segunda esquina onde a rua, mais larga, já deixava passar a custo uma carroça, é que avistou aquele rio de homens que passava levando às costas porcos e barris. Alguns reconheceram-no e saudaram-no. As crianças tentavam trepar por eles acima. Uma ou outra, mais rápida nas soluções da vida, ia dependurar-se num telhado para alcançar com a mão os pães e a carne seca que as mulheres carregavam à cabeça. Mas era descoberta e apeada, e depois perseguiam-na um pouco, por chacota.
– Ah, Micer, que lhe dizem as estrelas? – Ele conhecia aquela voz meio rouca. Era Fernando Bom, o taberneiro transpirava ainda mais do que o costume e não tirava os olhos do desfile, como se o seu interesse os empurrasse.
– Isto que é? – perguntou Joan de Sória.
– Isto é o carregarem-se os navios. Micer, cá vamos todos para o sul. Para lá do mar das trevas, para fora das atenções de Deus.
– Ele está em toda a parte – disse Joan.
– Isso veremos – disse o taberneiro. E prosseguiu o seu caminho para cima, atrás de um carro onde homens de lenço nas cabeças baloiçavam ao ritmo de uma canção dos portos.
Joan acompanhou-os, fascinado. O chão luzia e borbulhava sob os pés. E em todos aqueles rostos, aqueles corpos, podia ver-se a carne transparente, o pulsar vigoroso das entranhas. Parou junto à capela de madeira onde as mulheres com vícios iam pedir perdão.
Ardiam duas velas de sebo no portal. O calor entortara-as e tinham-se inclinado uma para a outra, como na troca de uma confidência.
Dentro, no meio das sombras, ouviu risos. Não conseguiu fazê-lo com muita precisão, mas com certeza tudo se relacionava.
Tudo o que acontecia na cidade convergia ou provinha daquele movimento – e os que, naquele instante, entregavam a alma, ou os pestiferados nos seus catres, ou as mulheres paridas mastigando o seu pão, sentiam esvoaçar-lhe o pensamento para fora, para a noite onde os homens corriam, descalços, de joelhos dobrados sob a carga.
– Micer, que lhe disseram as estrelas?
Conhecia o rapaz que se deteve, pousando as mantas que levava às costas. Não sabia o seu nome, porém vira-o esmolar, depois crescer e encolerizar-se, como a tantos rapazes do seu bairro. Ele abria--lhe os grandes olhos claros que o fumo ou a bebida avermelhara.
– Sempre a direito para o sul, não é?
Joan sorriu. Todos os seus vizinhos acreditavam nessa amável história. Com ela os consolara anos e anos, dando fuga aos espíritos para longe dos seus destinos vis e malcheirosos. Ah, sim, falara mesmo de perfumes, de árvores que cantavam; de guardas que dormiam seis meses noite e dia e que só acordavam para se espreguiçarem e passarem azeite pelas lanças para que o relento as não enferrujasse durante o novo sono de seis meses. Agora iam chamar-lhe mentiroso; e os que conseguissem regressar acabariam por se rir com ele, bêbados, com direito a dar achegas. Um ou outro viria pedir contas, quebraria uma bilha ou um cadinho para que Joan de Sória estremecesse e os confortasse na desilusão. E um deles seria aquele rapaz.
– Que lhe disseram as estrelas, hã?
– Nada, moço. Não querem saber disto.
O rapaz começou a soluçar. Chorava baixo, com os ombros encostados à nudez da capela. Alguns homens pararam a olhá-los.
– Para que é esta corrida – disse Joan – assim, de noite, como os meliantes?
– São as pressas dos príncipes – respondeu um, aliviando a corda que lhe passava em volta do pescoço. O seu fardo subiu e abateu-se e dele escorreu um sumo esbranquiçado. Tinha uma vaga forma de animal.
– O que eu queria, Micer – disse o rapaz – era poder escolher os pensamentos. Porque há gente que fala de ouro e das maravilhas. E depois vêm outros com agoiros.
– Anda rapaz. Quem pensa, não embarca – disse o homem do odre. – A mim, senhor, o que me tira o sono é temer que cheguemos à bordinha do mundo e a maré nos empurre, entende? E não ter tempo para virarmos.
Joan pousou os dedos no cabelo do rapaz. Ele sacudiu-se e carregou as suas mantas.
– Pode até suceder – gritou Joan – que este mundo se venha a revelar redondo como um fruto e ninguém lhe conheça um princípio ou um fim! …
Os homens tinham retomado a marcha mas ouviram-no bem e inclinaram-se, batendo os pés no chão, às gargalhadas. No meio deles, a cabeça doirada do rapaz elevava-se um pouco, mais serena.
Buscou-o com os olhos e sorriu.
– Sempre a direito para sul – confirmou Joan."
Hélia Correia, em "Sul", conto publicado na  revista Oceanos, 1992

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