quarta-feira, 5 de julho de 2017

Uma gota de azul basta

Pescadores
REDES
"Na Foz são os pescadores que fazem as redes, sentados no areal, com a primeira malha metida no dedo grande do pé, na mão direita a agulha com o fio e na mão esquerda o muro. As melhores redes eram as de ticum e o melhor ticum o que se vendia em Lordelo.
As redes são muito variadas. Há as redes da pescada; as robaleiras para o robalo na restinga e fora da barra; os quartos para o sável; e para a solha que vive na areia e cor da areia, uma rede especial, a feiticeira, com duas ordens de malhas. A rede, quando vem do mar, é lavada; seca e encascada. Depois remenda-se e mete-se nos cestos. Há também diferentes linhas e espinéis, para a faneca, para o robalo, que gosta das águas remexidas e dos sítios onde rebenta a onda, para a enguia, que é tão voraz que nem precisa de anzol, apanha-se com engodo, e até para o congro, no mar alto, tendo-se o cuidado de levar um machado, porque esses peixes, quando grandes, são terríveis, e mesmo dentro do barco, levantam-se para os homens como feras.
Barcos, houve na Foz catorze catraias (já não há nenhuma), batéis para a sardinha, que levavam quatro homens e seis peças, botes para a faneca e gamelas para o serviço do rio. Tenho por estas quatro tábuas com o fundo chato uma especial predilecção. Foi nelas que aprendi a gingar, o que se faz só com um remo e certo movimento de pulso, e foi nelas também que aprendi a nadar à força, porque se voltam na ressaca com uma extrema facilidade.
Quanto a quinhões, era assim: vendido o peixe, metade do dinheiro que a mulher do pescador ganhava com a canastra tomava conta dele o arrais, que o dividia em quinze partes para os homens, uma para o moço e duas para a embarcação. Assim, até os que por sorte não apanhavam peixe tinham um quinhão garantido do mealheiro comum. Ficava ainda uma pequena parte nas mãos do arrais para o tempo de Inverno, quando se não podia ir ao mar.
 
Esmoriz, Paramos
PARAMOS
Estava na carreira de tiro em Esmoriz. Não via o mar, mas sentia-o no peito dilatado. Perto de mim, uma moita de pinheiros novos; e as agulhas escorriam molhadas de fresco. Uma nora, um choupo. Ao longe, as barracas de madeira agrupadas – Paramos. Uma gaivota pairando sobre um charco... Para o outro lado, campos lavradios com milho rasteiro que sabe a ar salgado, casas de lavradores perdidas entre sebes, de telhados muito baixos onde secam abóboras amarelas.
Aqui, o pescador vive em barracas de madeira que têm o aspecto de povoação lacustres. Em certos dias iça-se o camaroeiro e a este sinal, esperado no interior das terras, começam a aparecer pelos caminhos empapados, dirigindo-se para o mar, as pesadas juntas de bois levadas à soga pelas moças. O lavrador associa-se ao homem do mar. Nesses dias larga o arado e toma parte na companha, ajudando a alar a grande rede que se usa para estas bandas e que as bateiras lançam à água. É um espectáculo extraordinário ...
Isto está de todo apagado nos meus apontamentos, mas ainda hoje, depois de tantos anos, tenho a impressão da paisagem de areal e pinheiros, do hálito azul matutino molhando a vegetação e da claridade hesitando em pousar e o sol em aquecer.
Há manhãs à beira-mar em que tudo parece um pouco de tinta muito leve e mais nada. Um pouco de tinta e frescura. A própria luz molhada estremece. O doirado tem muita água e desbota. Uma gota de azul basta para o mar e o céu. E a manhã, trespassada e a escorrer, nascida e hesitando, faz medo que se desvaneça como fantasmas de manhã.
Cabedelo
NO CABEDELO
O Cabedelo para mim era o deserto cheio de prestígio e de aventuras... Era no Cabedelo que tomávamos os melhores banhos, deitados na areia, deixando vir sobre nós a vaga num rodilhão de algas e espuma. Andar um momento envolvido na crista da onda, ser atirado numa sufocação sobre a areia, correr de novo para o mar, direito à vaga que se encapela lá no fundo, formando concha, outra vez aturdido e impregnado de uma vida nova; e depois procurar, a escorrer, um côncavo quentinho de areia que nos sirva de abrigo contra o vento e secar-se a gente naquele lençol doirado – é uma das coisas boas da terra. E outro prazer simples e extraordinário E ir descalço pelo grande areal fora com os pés na água. A onda vem, espraia-se, molha-nos e salpica-nos de espuma. Calca-se esse mosto branco e salgado, que gela e vivifica, e caminha-se sempre ao lado dos sucessivos rolos que se despedaçam na areia. Ao longe o mar chapeado de placas movediças... A onda vem, cresce e, antes de se despedaçar em espuma, o sol veste-a de uma armadura de aço a reluzir. Há-as de um esverdeado de alga morta, há-as que se derretem e fundem em torvelinhos de branco e há-as que recuam e se enovelam noutras ondas prestes a desabar. Mas há umas, esplêndidas, que vi em Mira, ao pôr do Sol, quando o vasto areal fica todo ensanguentado. A onda forma-se e corre por aquela magnífica estrada que vem do sol até à praia, ganha primeiro reflexos doirados na crista e depois, quando se estira pelo areal molhado, fica cor do vinho nos lagares.
Outras vezes percorríamos o Cabedelo a pé como exploradores. Há lá canaviais, poças de água azul e polida, rochas luzidias por onde escorregávamos, peixes nascidos que procuram o refúgio das pedras e a água aquecida para se acabarem de criar, caranguejos nas fisgas e, na vazante da maré, grandes lagos que navegávamos ao acaso, deixando o barco ir à toa e encalhar no areal ...
O Cabedelo produz, além das canas, uma espécie de cardo, plantas rasteiras e humildes de folha dura, que dão uma flor pequenina e vermelha, outras que parecem os chapotos que nascem nos velhos muros, e ainda outras mais pobres com a folha em escama pela haste acima. Estes vastos areais, revestidos às vezes de cabelos de oiro que seguram as dunas, estão todo  o ano a concentrar-se para em Agosto sair daquela secura e do amargo do sal, um lírio branco que os perfuma, dura algumas horas e logo desaparece.
 Raul Brandão, in Os Pescadores, 1923, Livraria Bertrand

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