domingo, 31 de julho de 2016

Ao Domingo Há Música




                  Viajar é nascer e morrer a todo o instante.
                                         Victor Hugo

Viajar foi o mote de partida para, através da força da escrita de Eugénio Lisboa, no ensaio " Há viagens e viagens", iniciar uma pequena viagem por algum Mundo, com registos de olhares que marcaram. 
Assim nasceu o post de sexta -feira, 29 de Julho, publicado neste blog. Uma viagem inicia-se no local  onde se vive. O Algarve, tão populoso neste momento estival, era o lugar de onde. Lisboa não ficava na rota. Os amantes desta cidade reclamaram, pelo que se aproveita o Domingo, dia de Música, para dar voz a esta Lisboa que eu amo.
O Fado é  de Lisboa. Alguém o afirma , a Severa o cantou e Portugal acredita.
Lisboa e eu ficamos redimidas com as vozes maiores de dois grandes fadistas que cantam com mestria  esta nossa bela cidade: Amália Rodrigues e Carlos do Carmo.


Lisboa menina e moça

No castelo, ponho um cotovelo

Em Alfama, descanso o olhar
E assim desfaz-se o novelo
De azul e mar
À ribeira encosto a cabeça
A almofada, na cama do Tejo
Com lençóis bordados à pressa
Na cambraia de um beijo

Lisboa menina e moça, menina
Da luz que meus olhos vêem tão pura
Teus seios são as colinas, varina
Pregão que me traz à porta, ternura
Cidade a ponto luz bordada
Toalha à beira mar estendida
Lisboa menina e moça, amada
Cidade mulher da minha vida

No terreiro eu passo por ti
Mas da graça eu vejo-te nua
Quando um pombo te olha, sorri
És mulher da rua
E no bairro mais alto do sonho
Ponho o fado que soube inventar
Aguardente de vida e medronho
Que me faz cantar

Lisboa menina e moça, menina
Da luz que meus olhos vêem tão pura
Teus seios são as colinas, varina
Pregão que me traz à porta, ternura
Cidade a ponto luz bordada
Toalha à beira mar estendida
Lisboa menina e moça, amada
Cidade mulher da minha vida

Lisboa no meu amor, deitada
Cidade por minhas mãos despida
Lisboa menina e moça, amada
Cidade mulher da minha vida
Letra e musica: Ary dos Santos e Paulo de Carvalho


Maria Lisboa

É varina, usa chinela,
tem movimentos de gata;
na canastra, a caravela,
no coração, a fragata.

Em vez de corvos no xaile,
gaivotas vêm pousar.
Quando o vento a leva ao baile,
baila no baile com o mar.

É de conchas o vestido,
tem algas na cabeleira,
e nas veias o latido
do motor duma traineira.

Vende sonho e maresia,
tempestades apregoa.
Seu nome próprio: Maria;
seu apelido: Lisboa.
Poema de David Mourão-Ferreira
Musica: Alain Oulman


Gaivota

Se uma gaivota viesse
trazer-me o céu de Lisboa
no desenho que fizesse,
nesse céu onde o olhar
é uma asa que não voa,
esmorece e cai no mar.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.

Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.

Se ao dizer adeus à vida
as aves todas do céu,
me dessem na despedida
o teu olhar derradeiro,
esse olhar que era só teu,
amor que foste o primeiro.

Que perfeito coração
morreria no meu peito morreria,
meu amor na tua mão,
nessa mão onde perfeito
bateu o meu coração.
Poema de Alexandre O´Neill
Música de Alain Oulman

Gaivota, um fado memorável, um dos mais belos da discografia de Amália.

Carlos do Carmo recorda as águas do Tejo e as canoas típicas do rio que banha Lisboa.
E, por Lisboa, Amália enche as ruas da  cidade com a sua inimitável voz. Amália é Portugal, mas sempre Lisboa.

sábado, 30 de julho de 2016

Para quê poetas em tempos de indigência?

“Nenhuma relação existe entre a minha profissão e os versos que faço. E não é esse o mal. O mal está no carácter desapaixonado, frio, mecânico do trabalho; na ausência de uma participação da inteligência e da sensibilidade na maioria das actividades profissionais; na servidão implacável do homem instalada no próprio cerne de uma civilização que se propõe, justamente, abolir a servidão. O mal é a ausência do homem. «O deserto cresce», dizia Nietzche. O deserto não cessa de crescer. Numa sociedade alienada até à medula, como a nossa, só a vagabundagem tem a força e o prestígio de um destino; mas vagabundo parece que não chega a ser profissão, salvo quando se tem conta farta no banco. Como não é o meu caso, e a poesia não dá para pagar o almoço, o jantar, e outra vez, e outra vez, até ao fim do mundo, parece não haver saída. Enquanto se não descobrir como há-de viver o poeta sem comer, não haverá solução para estas cigarras que persistem em sonhar alegria até ao seio da morte. A não ser que se ponha em prática o que Platão já aconselhava na República: desterrá-los, simplesmente. «Para quê poetas em tempos de indigência?»”.
Eugénio de Andrade, in Rosto Precário, 6ª ed., Fundação Eugénio de Andrade, 1995


Escrito no Muro

Procura a maravilha.

Onde a luz coalha
e cessa o exílio.

Nos ombros, no dorso,
nos flancos suados.

Onde um beijo sabe
a barcos e bruma.

Ou a sombra espessa.

Na laranja aberta
à língua do vento.

No brilho redondo
e jovem dos joelhos.

Na noite inclinada
de melancolia.

Procura.

Procura a maravilha.
Eugénio de Andrade, in Obscuro Domínio, Limiar, p.16-17

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Viajar

Algarve, Ria do Alvor
Há Viagens e Viagens
Por Eugénio Lisboa
                                                     Heureux qui comme Ulysse,
                                                       a fait un bom voyage.
                                                                                            Du Bellay
"Quase ninguém é indiferente ao apelo à viagem. E quase toda a gente inveja Ulisses, que, se não fez, exactamente, uma boa viagem, como canta Du Bellay, perpetrou, pelo menos, uma longuíssima e acidentada odisseia de retorno.
Há gostos para tudo. Du Bellay invejava Ulisses. Gide torcia o nariz à odisseia do grego, porque, no fim da viagem, esperava-o Penépole, que, para sempre, o iria amarrar ao lar. Exaltava, em contrapartida, Sindbad, o das Mil e Uma Noites, por ser livre como um passarinho: no fim da viagem, esperava-o, não uma amarra, mas uma nova viagem. Para Gide, também, uma viagem era apenas o prefácio à viagem seguinte, em contraste com a de Ulisses, que não passou de uma obrigatória navegação de regresso. Gide tinha igualmente um lar à espera, em Cuverville, mas fazia de conta que não dava por isso, e traiu, tanto quanto pôde – e sem complacências – a sua fiel Penélope que, para o caso, se chamava Madeleine. O que ele queria, está-se a ver, era copiar, com “gusto” e mesmo frenesi, o fluir libérrimo do marinheiro Sindbad. 
Viajar tem boa e tem má imprensa. Há quem elogie, há quem diga mal e há quem, simplesmente, se aborreça. O actor e escritor Al Boliska propôs uma definição célebre que hoje anda citada por todo o lado: “Viajar de avião”, disse ele, “são horas de tédio interrompidas por puro terror.” Ainda assim, Boliska só critica o viajar de avião, não todo o viajar. Mas há quem demita qualquer espécie de viagem. O conhecido romancista Paul Theroux, com obra assinalável transposta para o cinema, observava que “viajar só é glamoroso em retrospecto”, isto é, só funciona depois de terminada a viagem, ao contá-la, ao serão, aos amigos. William Trevor dizia o mesmo, de outra maneira: “Ele só viajava para poder voltar para casa”, isto é, o melhor da viagem era o regresso. Nem Ulisses foi tão longe: suspeito que gostou mais da ida do que da volta…
Algarve, Marina da Praia da Rocha
Algarve, Praia da Rocha
De entre os demolidores do mito da viagem, citarei o talvez mais antigo (será?): Sócrates, que disse, imaginem, esta barbaridade: “Vê um promontório, uma montanha, um mar, um rio e viste tudo.” Como se não houvesse rios e rios, promontórios e promontórios, cidades e cidades! Quem pode ser de opinião que o Amazonas é o mesmo que qualquer pífio afluente de um rio de trazer por casa… Quem pode afirmar que ver Leiria é o mesmo que ver Paris ou Veneza! Ou como se Florença fosse o mesmo que Alguidares de Baixo! Ou como se o Iguaçu não diferisse grande coisa das pindéricas “cascatas” da Namaacha, da minha saudosa infância africana!
Claro que é preciso saber viajar, saber ver e, sobretudo, gostar de ver. Viajar por viajar é inútil e fica caro. Como dizia o outro, não vale a pena dar a volta ao mundo só para contar o número de gatos que há em Zanzibar.(…)
Viajar – o convite à viagem! Há quem proteste em termos paradoxais: “É pena”, dizia Chesterton, “as pessoas viajarem por países estrangeiros; estreita-lhes de tal maneira o espírito.” Sterne, no seu imenso Tristram Shandy, não vai tão longe, mas faz uma recomendação: “Um homem deve também conhecer alguma coisa do seu próprio país, antes de ir para o estrangeiro.”(...)
“Viajar é quase como falar com homens de outros séculos”, dizia Descartes. (...)”
Eugénio Lisboa, em ensaio publicado no JL
Angola, Quedas de Kalandula
Angola, Quedas de Kalandula
Angola, Praia do Lifune
Angola, Pedras Negras de Pungo Andongo
Angola, peregrina da Muxima
Angola, Rio Queve
Angola, Kalandula


Brasil, Rio de Janeiro
Brasil, Rio de Janeiro
Brasil, Rio de Janeiro

Brasil, Curitiba
Brasil, Curitiba
USA, New York
USA, New York
USA, New York
Estónia, Tallin


Estónia, Tallin
Finlândia, Helsínquia
Finlândia, Helsínquia
Finlândia, Helsínquia

Itália, Veneza
Itália, Veneza
Itália, Veneza

Áustria, Viena

Áustria, Viena
Hungria, Budapeste
Hungria, Budapeste
República Checa, Praga
República Checa, Praga
Roma, Itália
Roma, Itália
Roma, Itália
Pádua, Itália
Pádua, Itália
Pádua, Itália
Florença, Itália

Florença, Itália
Florença, Itália
Florença, Itália
Algarve, costa vicentina
Algarve, costa vicentina
Algarve, costa vicentina
Algarve, Praia da Rocha
Viajar é desaparecer, uma incursão solitária por uma estreita linha geográfica até ao esquecimento.
Paul Theroux, O Velho Expresso da Patagónia, Quetzal, p.23