domingo, 31 de agosto de 2014

Ao Domingo Há Música

As palavras são pontos que brilham quando os sons as enformam. Enchem-se de cores e resplandecem conforme os olhos as desejam. Paisagens, retratos, sonhos, devaneios. Aqui, ali, lá longe, tão perto. Anseios de mim, saudades de ti. São assim as palavras. 
Neste último Domingo de Agosto, Wolf Larsen deu voz às palavras  em  " If I be wrong".


What if I'm wrong, what if I've lied
What if I've dragged you here to my own dark night
And what if I know, what if I see
There is a crack run right down the front of me

What if they're right, what if we're wrong
What if I've lured you here with a siren song
But if I be wrong, if I be right
Let me be here with you tonight

Ten thousand cars, ten thousand trains
There are ten thousand roads to run away

But I am not lost, I am not found
I am not Dylan's wife, not Cohen's hound
But if I be wrong, if I be right
Let me be here with you tonight

And what if I can't, what if I can
What if I'm just an ordinary man

If there is a will, there is a way
I will escape for sure, I am David Blane
But if I be wrong, if I be right
Let me be here with you
If I be wrong, if I be right
Let me stay here in your arms tonight
And I have been wrong, I have been right
I have been both these things all in the same night
So if I be wrong, if I be right
Let me here with you tonight

sábado, 30 de agosto de 2014

Património de Faro


Arco da Vila
Autor: Centro Nacional de Cultura
  Arco da Vila



  Autor:Centro Nacional de Cultura
2787 Património Património Classificado: Sim 
Classificação: Monumento Nacional 
Protecção Jurídica : Decreto de 16-6-1910. 
Uso Actual: Local público 
Proprietário/Instituições Responsáveis: Governo Civil de Faro e Direção Regional de Turismo do Algarve (proprietários).
Descrição Histórica/Artística
Este imponente arco ergue-se na Praça de D. Francisco Gomes. Trata-se da antiga porta do Castelo, uma das entradas da "Vila-Adentro" e é uma reconstrução do final do séc. XVIII, ordenada pelo Bispo D. Francisco Gomes. O projecto é do arquitecto genovês Francisco Xavier Fabri. Esta obra foi inaugurada em 1812.
A "porta" é em cantaria, ladeada por duas colunas jónicas e encimada por um nicho, no qual se encontra uma bela imagem de S. Tomás de Aquino (padroeiro da cidade desde o séc. XVII), em mármore branco, escultura que o bispo mandou vir de Itália. Sobre o conjunto encontra-se um campanário com sino.
Na fachada estão duas lápides: uma com a conhecida inscrição na qual D. João V mandou consagrar o reino à Imaculada Conceição; a outra é alusiva ao próprio arco, consagra-o a S. Tomás e explica por que foi este santo escolhido para padroeiro da cidade.
Na face interior existe um arco em ferradura, reaberto em 1992, que indicia ter sido por esse lado a entrada da cidade antes da conquista cristã, sendo fechada a face frontal por onde actualmente se entra.
No fecho do arco encontra-se uma inscrição que diz que a obra foi mandada fazer em 1757, à custa dos mareantes.
Morada: Frente ao jardim Manuel Bivar, Sé
8000 FARO

Fonte de Informação:CNC / Patrimatic Bibliografia
A.A.V.V., «Faro», in Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Vol. X, Lisboa/Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia, Limitada, [s.d.].
LAMEIRA, I. C. Francisco, Faro : Edificações Notáveis, Faro, Câmara Municipal de Faro, 1995.
LOPES, Flávio (coord.), Património Classificado - Arquitectónico e Arqueológico - inventário, vol. I, Lisboa, IPPAR, 1993.

Data de Actualização: 27-08-2014 

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

A dança de Ravel


Symphonie chorégraphique
"Daphnis et Chloé" - Benjamin Millepied
"Benjamin Millepied preparou os bailarinos do Ballet de l’Opéra de Paris para uma nova criação de uma das maiores obras-primas do Sec.XX, Daphnis et Chloé de Maurice Ravel. O coreógrafo mergulhou na música e partiu  para esta aventura como um desafio , numa viagem fora do tempo. Um Encontro. 
Composição maior , uma das obras-primas da música francesa, Daphnis et Chloé inspirou gerações de coreógrafos ,  de Michel Fokine, que foi o primeiro a transpô-la para cena a Frederick Ashton. Na Primavera , foi  Benjamin Millepied que se confrontou com a célebre composição de  Maurice Ravel. Um desafio. Brigitte Lefèvre, Directora  da dança, é a responsável deste encontro que se enriqueceu com a presença da Orchestre e do Choeur de l’Opéra de Paris sob a direcção de  Philippe Jordan e do artista Daniel Buren que assina a cenografia. Daphnis et Chloé conta as aventuras contrariadas  de um pastor e da sua prometida  Chloé. Após  um século da sua criação –  8 Junho de  1912 no  Théâtre du Châtelet – o Ballet de l’Opéra de Paris entrou na  dança de Ravel. Um grande acontecimento. Benjamin Millepied  explica os desafios… e os desejos." Opéra de Paris

Daphnis et Chloé - Benjamin Millepied por operadeparis


Daphnis et Chloé - Pas de deux por operadeparis

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Há Mar, Há Praia, Há Gente


Despido, imponente, soberbo o areal deixa-se ir nas ondas  tecidas pelo Mar.  Enreda-se em lençóis de espuma sob o cinzento olhar de um céu que impaciente  espera o azul  da Primavera.  É o mês de Março neste Algarve de praia vazia. 

Vestido de gente, o areal sufoca e morre no Mar. É o final do mês de Agosto. Dias dourados e de céu azul. Tempo de folia e de agonia .

Na largueza do dia , o mar espraia-se . Indolente,  atrevido, bajulador. E submissas as areias entregam-se com  volúpia, de sussurro em sussurro. Março permite. 

Queimam as areias no calor de Agosto. É  o astro. É a turba. Invadido, o  Mar retém as águas . 

Luminosas resplandecem no movimento e na forma. Longas, largas, inteiras, quebradas são as ondas do Mar de  Março.

Transformam-se  em Agosto. Dóceis, lisas, planas, sem identidade para abraçar  quem as procura. 

Os guardiões do areal  descansam . As portas das grutas estão abertas aos desafios dos dias que Março compõe. A magia, os segredos das histórias com mar.

O mar tomou os rochedos. A maré calma aprisiona o mistério do alto mar , embora Agosto seja  o tempo de todas as descobertas.
Algarve é Mar , é Praia , é Gente em Agosto.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Centenário de Julio Cortázar

“Qualquer um que não leia Cortázar está condenado; não lê-lo é uma doença grave e invisível que, com o tempo, pode ter terríveis consequências. Não quero que essas coisas aconteçam comigo, então devoro avidamente todas as invenções, mitos, contradições e jogos mortais do grande Júlio Cortázar. “ Pablo Neruda

Julio Cortázar, escritor e intelectual argentino, é considerado um dos autores mais inovadores e originais do seu tempo. Mestre no conto e na narrativa curta, a sua obra é comparável a nomes como os de Edgar Allan Poe, Tchékhov ou Jorge Luis Borges. Deixou igualmente romances como "Rayuela", que inauguraram uma nova forma de fazer literatura na América Latina, rompendo com o modelo clássico mediante uma narrativa que escapa à linearidade temporal e onde as personagens adquirem uma autonomia e uma profundidade psicológica raramente vistas.
O Estado argentino preparou um programa para comemorar o centenário de Julio Cortázar. A exposição Los Otros Cielos— cujo nome ecoa o título de um dos contos do livro Todos os Fogos o Fogo (1966) — atravessa toda a vida de Cortázar através dos arquivos pessoais que o autor deixou. Inaugurada, ontem, no  Museu Nacional de Belas Artes(MNBA) de Buenos Aires, está organizada em 12 núcleos temáticos.
Filho de pai diplomata, Julio Cortázar nasceu em Bruxelas, em 26 de Agosto 1914. Com quatro anos de idade foi para a Argentina, onde, devido à separação dos seus pais, foi educado pela mãe, uma tia e uma avó. Incentivado pela mãe, que lhe seleccionava o que devia ler, desde muito cedo que se interessa por literatura, ao ponto de na sua juventude um médico o aconselhar durante pelo menos seis meses a ler menos e a sair de casa para apanhar sol. Com o título de professor normal em Letras, inicia os seus estudos na Faculdade de Filosofia e Letras, que teve de abandonar logo de seguida, por problemas financeiros.
Por não concordar com a ditadura vigente no seu país, muda-se para Paris, em 1951. Quatro anos antes, por intermédio de Jorge Luis Borges, já tinha publicado o conto "Casa Tomada", o primeiro do livro "Bestiário", na importante revista Anales de Buenos Aires que se transcreve.



Casa tomada
Julio Cortázar


“Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga (as casas antigas de hoje sucumbem às mais vantajosas liquidações dos seus materiais), guardava as lembranças de nossos bisavós, do avô paterno, de nossos pais e de toda a nossa infância.
Acostumamo-nos Irene e eu a persistir sozinhos nela, o que era uma loucura, pois nessa casa poderiam viver oito pessoas sem se estorvarem. Fazíamos a limpeza pela manhã, levantando-nos às sete horas, e, por volta das onze horas, eu deixava para Irene os últimos quartos para repassar e ia para a cozinha. O almoço era ao meio-dia, sempre pontualmente; já que nada ficava por fazer, a não ser alguns pratos sujos. Gostávamos de almoçar pensando na casa profunda e silenciosa e em como conseguíamos mantê-la limpa. Às vezes chegávamos a pensar que fora ela a que não nos deixou casar. Irene dispensou dois pretendentes sem motivos maiores, eu perdi Maria Esther pouco antes do nosso noivado. Entramos na casa dos quarenta anos com a inexpressada ideia de que o nosso simples e silencioso casamento de irmãos era uma necessária clausura da genealogia assentada por nossos bisavós na nossa casa. Ali morreríamos algum dia, preguiçosos e toscos primos ficariam com a casa e a mandariam derrubar para enriquecer com o terreno e os tijolos; ou melhor, nós mesmos a derrubaríamos com toda justiça, antes que fosse tarde demais.
Irene era uma jovem nascida para não incomodar ninguém. Fora sua actividade matinal, ela passava o resto do dia tricotando no sofá do seu quarto. Não sei por que tricotava tanto, eu penso que as mulheres tricotam quando consideram que essa tarefa é um pretexto para não fazerem nada. Irene não era assim, tricotava coisas sempre necessárias, casacos para o inverno, meias para mim, xales e coletes para ela. Às vezes tricotava um colete e depois o desfazia num instante porque alguma coisa lhe desagradava; era engraçado ver na cestinha aquele monte de lã encrespada resistindo a perder sua forma anterior. Aos sábados eu ia ao centro para comprar lã; Irene confiava no meu bom gosto, sentia prazer com as cores e jamais tive que devolver as madeixas. Eu aproveitava essas saídas para dar uma volta pelas livrarias e perguntar em vão se havia novidades de literatura francesa. Desde 1939 não chegava nada valioso na Argentina. Mas é da casa que me interessa falar, da casa e de Irene, porque eu não tenho nenhuma importância. Pergunto-me o que teria feito Irene sem o tricô. A gente pode reler um livro, mas quando um casaco está terminado não se pode repetir sem escândalo. Certo dia encontrei numa gaveta da cómoda xales brancos, verdes, lilases, cobertos de naftalina, empilhados como num armarinho; não tive coragem de lhe perguntar o que pensava fazer com eles. Não precisávamos ganhar a vida, todos os meses chegava dinheiro dos campos que ia sempre aumentando. Mas era só o tricô que distraía Irene, ela mostrava uma destreza maravilhosa e eu passava horas olhando suas mãos como puas prateadas, agulhas indo e vindo, e uma ou duas cestinhas no chão onde se agitavam constantemente os novelos. Era muito bonito.
Como não me lembrar da distribuição da casa! A sala de jantar, lima sala com gobelins, a biblioteca e três quartos grandes ficavam na parte mais afastada, a que dá para a rua Rodríguez Pena. Somente um corredor com sua maciça porta de mogno isolava essa parte da ala dianteira onde havia um banheiro, a cozinha, nossos quartos e o salão central, com o qual se comunicavam os quartos e o corredor. Entrava-se na casa por um corredor de azulejos de Maiorca, e a porta cancela ficava na entrada do salão. De forma que as pessoas entravam pelo corredor, abriam a cancela e passavam para o salão; havia aos lados as portas dos nossos quartos, e na frente o corredor que levava para a parte mais afastada; avançando pelo corredor atravessava-se a porta de mogno e um pouco mais além começava o outro lado da casa, também se podia girar à esquerda justamente antes da porta e seguir pelo corredor mais estreito que levava para a cozinha e para o banheiro. Quando a porta estava aberta, as pessoas percebiam que a casa era muito grande; porque, do contrário, dava a impressão de ser um apartamento dos que agora estão construindo, mal dá para mexer-se; Irene e eu vivíamos sempre nessa parte da casa, quase nunca chegávamos além da porta de mogno, a não ser para fazer a limpeza, pois é incrível como se junta pó nos móveis. Buenos Aires pode ser uma cidade limpa; mas isso é graças aos seus habitantes e não a outra coisa. Há poeira demais no ar, mal sopra uma brisa e já se apalpa o pó nos mármores dos consoles e entre os losangos das toalhas de macramê; dá trabalho tirá-lo bem com o espanador, ele voa e fica suspenso no ar um momento e depois se deposita novamente nos móveis e nos pianos.
Lembrarei sempre com toda a clareza porque foi muito simples e sem circunstâncias inúteis. Irene estava tricotando no seu quarto, por volta das oito da noite, e de repente tive a idéia de colocar no fogo a chaleira para o chimarrão. Andei pelo corredor até ficar de frente à porta de mogno entreaberta, e fazia a curva que levava para a cozinha quando ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na biblioteca. O som chegava impreciso e surdo, como uma cadeira caindo no tapete ou um abafado sussurro de conversa. Também o ouvi, ao mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo do corredor que levava daqueles quartos até a porta. Joguei-me contra a parede antes que fosse tarde demais, fechei-a de um golpe, apoiando meu corpo; felizmente a chave estava colocada do nosso lado e também passei o grande fecho para mais segurança.
Entrei na cozinha, esquentei a chaleira e, quando voltei com a bandeja do chimarrão, falei para Irene:
— Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos.
Ela deixou cair o tricô e olhou para mim com seus graves e cansados olhos.
— Tem certeza?
Assenti.
— Então — falou pegando as agulhas — teremos que viver deste lado. 
Eu preparava o chimarrão com muito cuidado, mas ela demorou um instante para retornar à sua tarefa. Lembro-me de que ela estava tricotando um colete cinza; eu gostava desse colete.
Os primeiros dias pareceram-nos penosos, porque ambos havíamos deixado na parte tomada muitas coisas de que gostávamos. Meus livros de literatura francesa, por exemplo, estavam todos na biblioteca. Irene pensou numa garrafa de Hesperidina de muitos anos. Frequentemente (mas isso aconteceu somente nos primeiros dias) fechávamos alguma gaveta das cómodas e nos olhávamos com tristeza. 
— Não está aqui.
E era mais uma coisa que tínhamos perdido do outro lado da casa. 
Porém também tivemos algumas vantagens. A limpeza simplificou-se tanto que, embora levantássemos bem mais tarde, às nove e meia por exemplo, antes das onze horas já estávamos de braços cruzados. Irene foi se acostumando a ir junto comigo à cozinha para me ajudar a preparar o almoço. Depois de pensar muito, decidimos isto: enquanto eu preparava o almoço, Irene cozinharia os pratos para comermos frios à noite. Ficamos felizes, pois era sempre incômodo ter que abandonar os quartos à tardinha para cozinhar. Agora bastava pôr a mesa no quarto de Irene e as travessas de comida fria.
Irene estava contente porque sobrava mais tempo para tricotar. Eu andava um pouco perdido por causa dos livros, mas, para não afligir minha irmã, resolvi rever a colecção de selos do papai, e isso me serviu para matar o tempo. Divertia-nos muito, cada um com suas coisas, quase sempre juntos no quarto de Irene que era o mais confortável. Às vezes Irene falava: 
— Olha esse ponto que acabei de inventar. Parece um desenho de um trevo?
Um instante depois era eu que colocava na frente dos seus olhos um quadradinho de papel para que olhasse o mérito de algum selo de Eupen e Malmédy. Estávamos muito bem, e pouco a pouco começamos a não pensar. Pode-se viver sem pensar.
(Quando Irene sonhava em voz alta eu perdia o sono. Nunca pude me acostumar a essa voz de estátua ou papagaio, voz que vem dos sonhos e não da garganta. Irene falava que meus sonhos consistiam em grandes sacudidas que às vezes faziam cair o cobertor ao chão. Nossos quartos tinham o salão no meio, mas à noite ouvia-se qualquer coisa na casa. Ouvíamos nossa respiração, a tosse, pressentíamos os gestos que aproximavam a mão do interruptor da lâmpada, as mútuas e frequentes insónias.
Fora isso tudo estava calado na casa. Durante o dia eram os rumores domésticos, o roçar metálico das agulhas de tricô, um rangido ao passar as folhas do álbum filatélico. A porta de mogno, creio já tê-lo dito, era maciça. Na cozinha e no banheiro, que ficavam encostados na parte tomada, falávamos em voz mais alta ou Irene cantava canções de ninar. Numa cozinha há bastante barulho da louça e vidros para que outros sons irrompam nela. Muito poucas vezes permitia-se o silêncio, mas, quando voltávamos para os quartos e para o salão, a casa ficava calada e com pouca luz, até pisávamos devagar para não incomodar-nos. Creio que era por isso que, à noite, quando Irene começava a sonhar em voz alta, eu ficava logo sem sono.) 
É quase repetir a mesma coisa menos as consequências. Pela noite sinto sede, e antes de ir para a cama eu disse a Irene que ia até a cozinha pegar um copo d'água. Da porta do quarto (ela tricotava) ouvi barulho na cozinha ou talvez no banheiro, porque a curva do corredor abafava o som. Chamou a atenção de Irene minha maneira brusca de deter-me, e veio ao meu lado sem falar nada. Ficamos ouvindo os ruídos, sentindo claramente que eram deste lado da porta de mogno, na cozinha e no banheiro, ou no corredor mesmo onde começava a curva, quase ao nosso lado.
Sequer nos olhamos. Apertei o braço de Irene e a fiz correr comigo até a porta cancela, sem olhar para trás. Os ruídos se ouviam cada vez mais fortes, porém surdos, nas nossas costas. Fechei de um golpe a cancela e ficamos no corredor. Agora não se ouvia nada.
— Tomaram esta parte — falou Irene. O tricô pendia das suas mãos e os fios chegavam até a cancela e se perdiam em baixo da porta. Quando viu que os novelos tinham ficado do outro lado, soltou o tricô sem olhar para ele.
— Você teve tempo para pegar alguma coisa? — perguntei-lhe inutilmente.
— Não, nada.
Estávamos com a roupa do corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos no armário do quarto.
Agora já era tarde.
Como ainda ficara com o relógio de pulso, vi que eram onze da noite. Enlacei com meu braço a cintura de Irene (acho que ela estava chorando) e saímos assim à rua. Antes de partir senti pena, fechei bem a porta da entrada e joguei a chave no ralo da calçada. Não fosse algum pobre-diabo ter a ideia de roubar e entrar na casa, a essa hora e com a casa tomada.”
Julio Cortázar, in “ Bestiário” e posteriormente em "Contos Latino-Americanos Eternos", Bom Texto Editora, Rio de Janeiro — 2005, organização e tradução de Alicia Ramal.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Um espaço intenso e agressivo

Maneiras
 IV
“(Tive uma alucinação: vi abertamente no espaço uma mão clara e imóvel. Um meu amigo assistiu ao intempestivo voo da sua própria mão direita através de uma praia, por sobre uma multidão de portugueses que devorava coisas. Além disso, escrevi duas páginas sobre as mãos de um assassino, que cumpriram a extrema tarefa de estrangular uma criança.)

«Mes mots sont des crimes» — disse o jovem suicida Jean-Pierre Duprey.
Mes mains sont des crimes — digo eu.
Mes mains et mes sculptures sont des crimes — diria o escultor.

Então, era assim o atelier: um espaço intenso e agressivo. Era o espaço do crime, O lugar onde as mãos haviam caminhado até ao seu limite. Tinham assumido um crime redentor.
Vejo a paisagem com seus eucaliptos de folhas em quarto lunar, as neves extraordinariamente sem pistas, grandiosas pedras polidas, nuvens, areias, salinas e águas. E o Sá-Carneiro diz: «A natureza que é para o artista? Coisa alguma.» Meu Deus, é preciso então subverter tudo. Aqui está o crime. O homem é o crime. Esta maravilha de encostar a paisagem ao muro e despejar-lhe em cima uma boa metralha. É o nosso crime — o do homem.
Eis as mãos do escultor, por este atelier fora, fazendo atentamente o seu crime. Violentas florações de ferro, cadáveres modernos onde uma nova vida subtil parte de um coração monstruoso, fixações de uma corrente electromagnética que atravessa a noite de Domingo (Dia do Senhor) para a manhã de segunda-feira (que é na realidade o primeiro dia, aquele em que rebenta a luz). O nosso terror atingiu a claridade que lhe é própria. Ficou um campo de grandes lâminas de ferro, couraças, pulmões, falos — toda uma simbologia do entusiasmo nocturno, da inteligente e terrífica onda que de repente nos conduziu até à madrugada. Que bom não ter de dar pelo nome de crítico — mas possuir só, para esgotar, um momento crítico, uma vida inteira extremamente crítica.
Passo pelo meio das esculturas, agora sem o escultor, e nada há que eu não saiba.
Sei de uma tremenda morte no lado esquerdo da escultura a ser, e a ressurreição nesse deserto amoniacal. Porque habita aqui a árvore da vida, a árvore petrificada que deu folhas e flor de dentro do sono. Deambulo por esta nação seca e vejo o objectuário selvagem; as falésias, colinas, baías e promontórios internos; e o silêncio de uma vegetação abstracta; o terrível paraíso da imobilidade. De súbito, uma ave de rapina arrebata o animal inocente, e o céu foge por esse instante fora. Céu de ferro trabalhado por pequenas estrelas corrosivas.
Afinal temos a nossa voluptuosidade negra, os nossos espelhos, o círculo vertiginoso dos corpos e a pormenorizada obsessão do nosso conhecimento. O desejo tem as suas formas, os espelhos replicam às nossas formas, as nossas formas possuem as suas próprias formas, o conhecimento encontra as suas formas. Tendemos a formar-nos, a formar o mundo, a reformar o mundo, dentro e fora. O mundo é a nossa forma de estar no mundo, e fomos nós quem inventou essa forma. Chamemos-lhe escultura. As mãos são doces e rebarbativos instrumentos e, num sentido mais próximo da sua dinâmica natural, são o acto de formar concretamente o espírito na matéria do tempo.
E agora cá temos o escultor, surgindo do fundo dos bastidores, onde não há sinal de estrelas. Vem das suas trevas. Quando é suficientemente apanhado pelas luzes, diz: Nada na manga. E, se conseguimos regular pelo seu o nosso ritmo de inspiração e expiração, descobrimos a pequena maravilha de que ele, na verdade, nada esconde na manga.
Levanto-me então da plateia e, por entre as metralhadoras esculpidas, conto de novo a parábola da agulha, que me obceca. Desentranhei-a de um velho manual.
Trata-se de uma mulher que perdeu uma agulha na cozinha e a procura na varanda de sua casa. Acorre então o jovem que pretende ajudá-la, e pergunta: Que procura? — Uma agulha. Caiu-me na cozinha. Logo o inexperiente jovem se espanta muito e quer saber porque a procura ela na varanda. — Porque na cozinha está escuro — responde a mulher.
A parábola ajudará a desaprender alguma coisa, e depois será possível aprender outra coisa.”
Herberto Helder, in " Retrato em movimento (1961-1968), Poesia toda 2 ", Plátano Editora, 1973

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Factos ou Valores

A distinção facto/valor
Roger Crisp
Universidade de Oxford
"De acordo com os defensores da distinção facto/valor, nenhum estado de coisas do mundo pode ser um valor, e os juízos avaliativos não devem ser entendidos como juízos de facto puros. A distinção foi importante na ética do séc. XX e continua em aberto o debate sobre o estatuto metafísico do valor, a epistemologia do valor e sobre qual será a melhor caracterização dos juízos de valor.
Um facto é um estado de coisas efectivo. Um valor é ou algo bom (o prazer, por exemplo), ou uma crença de que algo é bom (dizer que o prazer é um dos meus valores é dizer que eu acredito que o prazer é bom). A distinção facto/valor foi de grande importância na filosofia moral do séc. XX, distinção traçada entre estados de coisas efectivos e valores nos dois sentidos (nem sempre se distinguindo claramente os dois sentidos).
Numa das versões da distinção facto/valor, não há valores "no mundo". John Mackie (1977), por exemplo, argumentou que tais itens são demasiado peculiares para integrarem qualquer metafísica ou epistemologia decente, e que a inexistência de valores era a melhor maneira de explicar os desacordos avaliativos. De acordo com a ética existencialista, a não factualidade do valor deixa-nos numa posição de liberdade radical para escolher.
A distinção, se entendermos que é acerca de avaliações, sugere que estas não são tentativas puras de exprimir factos. Uma versão famosa e influente desta perspectiva é a de Hume (1739-40), que afirmou que as conclusões com "deve" não se seguem logicamente de afirmações com "é". Logo, se afirmamos correctamente que algo deve ser feito (e isso pode ser um dos nossos valores) com base num argumento que aparentemente se refere apenas a factos, uma das afirmações "factuais" envolve um "deve" oculto.
Esta versão da distinção facto/valor, aliada a uma concepção restrita do que pode contar como afirmação factual, foi de grande importância. Se os factos se restringem, por exemplo, a descrições puramente neutras, tais como as que encontramos nas ciências da natureza, os juízos morais podem ser vistos como algo diferente de afirmação de factos. (Houve quem argumentasse que a própria ciência é um trabalho avaliativo, de maneira que a distinção facto/valor é espúria.) Pode-se então defender que palavras como "bom" ou "correcto" têm papéis especiais, não descritivos. De acordo com o emotivismo, afirmar que X é bom é expressar uma atitude favorável relativamente a X, e talvez encorajar os outros a adoptar tal atitude; de acordo com o prescritivismo, a afirmação deve ser entendida como um imperativo. Segundo estas perspectivas, certas palavras, como "corajoso", por exemplo, podem ter algum conteúdo factual; mas isto pode sempre distinguir-se, pelo menos conceptualmente, do conteúdo valorativo.
Entre aqueles que defenderam que os valores são parte do mundo e que as avaliações exprimem factos incluem-se os defensores do realismo moral. Há pelo menos dois tipos de realismo moral. O naturalismo ético afirma que os valores são factos naturais, querendo-se dizer com "natural" que tais factos devem ser identificados com, ou ser vistos como constituídos por, factos susceptíveis de serem investigados pelas ciências da natureza. O não naturalismo ético entende os valores como factos sui generis, sendo que qualquer tentativa de os identificar com factos naturais incorre naquilo a que G. E. Moore (1903) chamou a "falácia naturalista".
Roger Crisp
Referências e leitura complementar
Ayer, A.J. (1936) Language, Truth and Logic, London: Gollancz; 2nd edn, 1946, ch. 6. (Uma das primeiras defesas do emotivismo, muito influente.)
Foot, P.F. (1978) Virtues and Vices, Oxford: Blackwell, esp. ch. 8. (Colectânea de ensaios de uma influente defensora do naturalismo ético.)
Hare, R.M. (1952) The Language of Morals, Oxford: Oxford University Press. (Exposição central do prescritivismo.)
Hume, D. (1739/40) A Treatise of Human Nature, ed. L.A. Selby-Bigge, revised by P.H. Nidditch, Oxford: Clarendon Press, 2nd edn, 1978, book 3, part I, section 1. (Contém a "Lei de Hume" respeitante ao "ser" e ao "dever ser".)
Mackie, J.L. (1977) Ethics: Inventing Right and Wrong, Harmondsworth: Penguin. (Defende que os valores não são factos, mas que a linguagem moral é uma tentativa de exprimir factos.)
Moore, G.E. (1903) Principia Ethica, Cambridge: Cambridge University Press. (Crítica do naturalismo e defesa do não naturalismo.)

Tradução de Desidério Murcho
Publicado em Routledge Encyclopedia of Philosophy, org. Edward Craig (Londres: Routledge, 1998)

domingo, 24 de agosto de 2014

Ao Domingo Há Música

"Tu és Força, Arte, Amor, por excelência! -
E, contudo, ouve-o aqui, em confidência;
- A Musica é mais triste inda que o Mar!"
António Gomes Leal, in 'Claridades do Sul', Ed. Assírio e Alvim



Quando  uma voz, um poema , uma melodia se juntam pode acontecer um grande momento musical. Eis o desafio que lança  Brendam Perry ( Dead Can Dance),em " All In Good Time " . A canção  pertence ao Álbum Anastasis de 2012




All your ships
Have left their moorings
Cast adrift
On the Sargasso Sea
Waiting for the wind
To set your sails free

When you reach
The end of your rainbow
Chasing shadows
And down on your luck
Look for the sign
Look for a sign

As you rise to the very top
Of your mountain
Just remember those
Poor lost souls
On their way down

You taught me patience
Was a virtue
I took my time
Let Nature take her cause
All was revealed
All in good time

Turn back your clocks
Open up your memories
Beneath the veil
Where time stands still
You showed me a sign
You showed me the sign

sábado, 23 de agosto de 2014

O Desterro dos Poetas


O DESTERRO DOS POETAS
                                             Manoel de Andrade

Nada vos quisera dizer que sonegasse o encanto
mas transito  por um mundo sombrio
e por caminhos degradados.
Já não vejo flores nas campinas
nem lírios à beira das estradas,
já não ouço o cantar dos pássaros
nem o murmúrio das fontes.
Restou-nos a paisagem decepada e nua,
de quando em quando, pequenos bosques solitários
e o sibilar melancólico do vento.

Viandantes milenares da estesia e do mistério,
hoje somos seres desgarrados e silentes.
Nossas imagens foram abatidas,
nossos símbolos calcinados,
globalizaram as metáforas,
plastificaram as rosas,
poluíram as estrelas.

Restaram-nos o espanto e os pressentimentos,
e, nessa patética realidade,
entre rimas e a paixão pelo lirismo,
a poesia mendiga descalça pelo mundo,
trajando seu rosário de versos encolhidos.
Nossas páginas já não são abertas,
já não publicam nossos livros,
declamamos num palco de figurantes,
e ante os versos desse drama,
não há público nem aplausos...
Versejar é uma vocação solitária,
uma chama delirante que se apaga no coração dos homens.


Apesar de tanto desencanto,
nada vos direi que sonegue a esperança,
mas digo que os poetas jamais silenciarão seu canto,
porque ninguém poderá desterrar o sonho e a beleza
e porque sempre haverá um poema de amor a ser escrito.
Os poetas cantam desde a aurora dos tempos,
pela glória de Aquiles e pela paixão por Beatriz.
Cantam para gestar uma “Ode Triunfal”,
para compor  “ Uma Canção Desesperada”,
ou para erguer uma bandeira libertária.

Cantam para denunciar os calvários de chumbo que sangraram tantas pátrias     
e para que o esquecimento não sepulte a história dos vencidos.
Cantam para acusar os tiranos e consagrar os mártires,
e para reunir na memória os punhos da bravura.
Os poetas sempre haverão de cantar,
enquanto a luz parir a vida, eles cantarão...
cantarão para abrir as janelas do infinito
e para semear novos sonhos nos herdeiros do amanhã.

Machucado por tanto desamor,
por esses acordes tolos e nocivos a malhar meus tímpanos,
e perante essa estética do absurdo,
a essa irreverência que empesta os ares
e proscrito por um tempo que confunde os nossos passos,
saio em busca do Eldorado.
Quero um cântaro de luz para beber a vida,
um sol de abril para iluminar meu rumo.
Quero meu veleiro, meu farol, meu porto, minha aldeia,
e ‘onde estiver meu coração, sei que lá  estará o meu tesouro’.


“Vou-me embora pra Pasárgada”
levando minhas  ternuras e uma fé inabalável.
Minhas velas vão rasgando o desencanto,
navegando nas lágrimas do mundo
e nesses mares de naufrágios.
Sei que quando o impasse se acabar,
as flores povoarão os campos
uma rosa purpurina se abrirá no teu canteiro
e a estrela da manhã surgirá num novo céu.
E eis que uma aurora de luz há de beijar a Terra,
o amor abraçará os filhos da esperança,
e só então a paz será um eterno banquete festejando a vida.
Vos digo que num só “idioma” se entenderão os povos,
que a música renascerá na melodia,
que uma nova literatura deslumbrará a alma
e que o nosso canto, sedutor e palpitante, reviverá no coração dos homens.

                                                    Curitiba, 20 de Agosto de 2014
Manoel de Andrade, poeta brasileiro

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Escrever

Escrever com palavras transparentes, invisíveis  quando as letras não se sabiam. Era o tempo da infância.Tempo dos sonhos, de grandes horizontes e de céu aberto. Uma lengalenga, uma ímpar litania .  Uma estrela de luz intensa num firmamento fechado de tanto azul. O espanto a surgir na pequenez do olhar . Era  a  imensidão de um  universo que se descobria. Era a árvore, era a flor, era a planta , era o pato, era o cordeiro que  cresciam na Quinta e contavam,  a cada momento, diferentes histórias.  Sem príncipes ou princesas desenhavam histórias de encantar. As palavras juntavam-se. Escutava-as. Saboreava-as. Traziam opíparos cheiros, inebriantes perfumes e deliciosos sabores. Como era fácil escrever. 
Cresceu . O azul do céu da cidade obrigava a exercícios mil. Geométricos, filosóficos, retóricos, literários. Implacáveis  exigiam palavras, discurso organizado e muita investigação. As palavras adquiriram forma e estatuto. Se não eram dúcteis  e  precisas, a escrita perdia-se. Encheram-se de cor as palavras. Esvaziaram paletas. Um compêndio de páginas várias marcou esse tempo.
Amadureceu. A vida escrevia-se em tratados, relatórios, pareceres, projectos e muitos planos diários. Era o tempo de dar e aprender. De entregar e receber. De partilhar e somar. Era o tempo da realização em contínua aprendizagem. Era o tempo de uma vida.
O tempo de todos os tempos chegou.E a escrita faz-se de momentos que chegam, vão e marcam. Escrever. As palavras já não se deixam desenhar. Prendem-nos, se nos querem. E, em jeito de privilégio, desenham-nos.
É este o desenho de 22 de Agosto de 2014.
                                                      Maria José Vieira de Sousa

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

A poesia recorda o que somos

Octavio Paz, (1914- 1998), foi um dos grandes escritores do séc. XX. Artífice exímio em vários géneros, Octavio Paz  inscreveu o seu nome na Literatura Universal. 
Dos  arquivos do jornal espanhol “ El País”, retirámos a entrevista concedida em 1990, quando recebeu o Prémio Nobel da Literatura.
“La poesía recuerda lo que somos”
"El escritor mexicano Octavio Paz, desde que recibió el jueves la noticia de la concesión del Premio Nobel de Literatura 1990, contesta el teléfono mientras prepara conferencias en su habitación de un hotel de Nueva York. "Siente enormes ganas de hablar, de saludar a sus amigos", dice su esposa, Marie-Jo, incapaz de contener la energía recuperada de este premio Nobel de Literatura de 76 años. Quiere hablar de poesía y de sus nuevas ideas sobre la necesidad de que los intelectuales ejerzan la crítica contra el consumismo capitalista pujante. 'la poesía nos ayuda a recordar lo que somos", declara en esta entrevista el autor de Laberinto de la soledad y El mono gramático.
Octavio Paz / María Jesús Polanco
Pregunta. ¿Qué consecuencias tiene para el idioma español la concesión de dos Premios Nobel consecutivos?
Respuesta. Para el idioma yo creo que no demasiadas, pero digamos que contribuye al mejor conocimiento de la literatura de lengua española en todo el mundo. Yo creo que este premio, como los anteriores, indica la vitalidad de nuestra literatura, lo mismo la que se escribe en España que la que se escribe en América. También, la gran variedad. Hay novelistas y novelistas muy distintos; hay poetas y poetas muy distintos. Mi poesía es muy distinta a la de Neruda, por ejemplo, a la de Borges. Pero, eso sí, al mismo tiempo es importante que la vez pasada le dieron el premio a un novelista de lengua española y ahora se lo han dado a un poeta que también escribe en español.
P. ¿Significa este premio que la poética en castellano está hoy en mejor momento que la narrativa?
R. No. Yo creo que no. Primero hubo una serie de poetas extraordinarios, lo mismo en España que en América. Pensamos en Neruda, en Borges o en la generación del 27 en España. Después apareció esta gran generación de novelistas, algunos de ellos espléndidos. Pero yo creo que se ha restablecido el equilibrio. Hay poetas y hay novelistas. A veces los novelistas se conocen más que los poetas. Por ejemplo, en los años veinte y treinta se conocía mucho más la novela norteamericana que la poesía. Poco a poco se descubrió que la novela norteamericana hubiera sido imposible sin la poesía. Lo mismo ocurre con la novela actualmente en América Latina; los grandes novelistas actuales de América Latina serían incomprensibles sin la influencia que sobre ellos han ejercido algunos poetas. 
P. ¿Vivimos, efectivamente, el fin de las utopías?
R. Sí.
P. ¿Y cree que ese final de las utopías nos han hecho más tolerantes o todo lo contrario?
R. Bueno, las utopías que habíamos padecido -no sé si llamarlas utopías-, es decir, el socialismo totalitario, todo esto fueron escuelas de intolerancia hacia quienes no pensaban como ellos, pero lo que me asusta mucho es el renacimiento de otros fanatismos, que no son fanatismos universalistas como los anteriores, sino fanatismos de tipo nacionalista o fanatismos de tipo religioso, y esto sí me parece muy grave porque son retrocesos, no es lo que nosotros queremos que sea la salida del siglo XXI.
P. ¿No le preocupa el peligro de una forma de intolerancia liberal, de una intolerancia capitalista? 
R. No. No lo creo, porque creo que el sistema liberal... En primer lugar, no hay que identificar liberalismo con capitalismo. Son términos cercanos, pero no son sinónimos. En realidad el capitalimo es anterior al liberalismo, históricamente hablando. Yo creo que el liberalismo es uno de los grandes correctivos del capitalimo. Lo que hay que decir es que la sociedad capitalista vive en permanente crisis porque es una sociedad liberal. Si no fuese una sociedad liberal, el capitalismo -que es, en esencia, mercado y competencia- se convertiría rápidamente en monopolio. Sí creo que en la sociedad contemporánea existen gérmenes de intolerancia, gérmenes racistas, por ejemplo. Lo que debía estar ahora más vivo que nunca, sobre todo entre los intelectuales -si es que van a continuar teniendo la misión que ejercieron el siglo pasado y de la cual abdicaron en parte al final de este siglo- es reanudar la crítica, ejercer la crítica. Si algo necesita la sociedad actual es la crítica. Yo no creo que sea un ideal humano el tipo de sociedad moderna, la sociedad de consumo. Producir para consumir y consumir para producir... En primer lugar, no todos consumen y no todos producen, es decir la economía de mercado produce injusticias graves. Pero, aparte de eso, consumir para producir y producir para consumir mutila el horizonte espiritual del hombre.
Poeta popular
P. Usted ha dicho que en la incertidumbre lo que permanece es la poesía, pero actualmente da la impresión de que la poesía es un género prácticamente clandestino.
R. Yo no sé si es clandestino o no lo es. Yo creo que lo que habría que preguntar es no cuánta gente lee poesía, sino quiénes leen poesía.
P. ¿Usted se considera un poeta popular?
R. Me considero un poeta que leen los jóvenes. En cierto modo sí lo soy, pues mis libros se publican en muchos idiomas y los editores los publican porque venderán algunos ejemplares, ¿no?
P. Pero ¿le gustaría ser más popular?
R. Me gustaría ser más popular, pero no a costa de la calidad de la poesía. Lo importante es qué clase de gente lee. La poesía la leen los jóvenes, la leen las mujeres, la leen los hombres de ciencia. Los que no leen poesía son los periodistas, los políticos, los profesores de sociología, los sociólogos... Toda esa gente lee muy poca poesía, aunque sus antecesores sí leían poesía. 
P. Mucha gente recita de memoria los poemas de Neruda, los suyos no. ¿Esto qué significa?
Octavio Paz / María Jesús Polanco
R. Perdone que le contradiga pero eso no es verdad. Recitaban los eslóganes de Neruda, eso sí. Pero los poemas de Neruda son a veces mucho más difíciles que los míos.
P. Usted ha advertido que la poesía sirve, entre otras cosas, para enfrentar al hombre con las mayores verdades: el amor y la muerte. Da la impresión de que el mundo moderno se ha olvidado o quiere olvidarse de esas dos verdades...
R. Sí, pero así le va. Yo creo que la poesía nos ayuda a recordar lo que somos.
P. ¿Usted cree que el mundo ha perdido valores políticos o religiosos que antes le servían de guía?
R. Yo creo que los absolutos no hay que buscarlos fuera de uno, no en los Estados, en las ideologías, en las iglesias, sino en la conciencia íntima personal.
P. ¿Es legítimo luchar por el paraíso en este mundo?
R. Sí, pero siempre que el paraíso no se convierta en el infierno, que es lo que ha ocurrido últimamente.
P. Acabamos de celebrar el 12 de octubre. ¿Qué le dice a usted esa fecha?
R. Yo no soy muy partidario de los aniversarios, pero me parece muy turbadora la feliz coincidencia de que me hayan dado el Premio Nobel precisamente en estas fechas. Yo creo que si hay una cosa cierta en todo esto es la universalidad de nuestra lengua.
P. ¿Tampoco es partidario de celebrar aniversarios tan sonados como el V Centenario del Descubrimiento?
R. Sí, porque amplió la visión del hombre. El hombre estaba limitado. El continente americano ignoraba que había otro continente, y el viejo mundo también ignoraba la existencia del continente americano. El gran problema teológico del siglo XVI fue que los evangelios dicen que los apóstoles tienen que ir a evangelizar todo el mundo conocido, entonces cuando los españoles descubren, este continente se dan cuenta de que parte de la humanidad había sido sustraída a los evangelios. Bueno, es la gran ventaja, que de pronto el mundo adquiere su unidad gracias a. la expansión . europea, fundamentalmente de España.
España y Vargas Llosa
P. ¿Cree usted que desde que España se ha incorporado a Europa se ha olvidado de América Latina?
R. Es posible que la vocación europea de España sea más fuerte que su vocación americana, pero yo creo que América le va a recordar a España su vocación americana. Yo creo que el problema de España es parecido al de México. Nosotros tenemos un vínculo especial, primero con los países de América Latina y con España, pero tenemos también un vínculo geopolítico, económico con Estados Unidos. Nuestra historia está ligada inexorablemente a la historia de Estados Unidos.
P. ¿Usted esperaba una intervención como la que tuvo Mario Vargas Llosa contra el régimen mexicano durante el encuentro organizado el mes pasado por la revista Vuelta?
R. Bueno, me sorprendió un poco porque yo creo que no tenía razón al decir que México es una dictadura perfecta. No es una dictadura ni tampoco es un régimen perfecto. Es un régimen de un partido hegemónico que se está convirtiendo más lentamente de lo que yo quisiera, en una sociedad realmente democrática. La gran interrogación es si el Partido Revolucionario Institucional (PRI) va a modificarse de tal modo que se convierta en un partido democrático, moderno, y también si la oposición de izquierda va a tener una evolución paralela y se va a modernizar como se ha modernizado el PSOE o el Partido Socialista francés. Decir que México es una dictadura perfecta es una frase un poco superficial de un hombre a quien yo admiro y quiero.
P. En México se le ha criticado por la realización de ese encuentro y por su vinculación a la compañía Televisa, ¿qué opina usted?
R. Televisa compró los derechos para retransmitir el encuentro, pero ni participó en las reunlones ni mucho menos -pregúntele a Vargas Llosa o a cualquier otro- hubo ningún tipo de presión. En México hay obsesiones. Hay una parte de la clase intelectual y de los periodistas que tienen nostalgias del socialismo autoritario y del populismo de hace unos años.
P. ¿Se siente usted querido en su país?
R. Yo tengo más lectores que la mayor parte de los que me critican. En ese sentido yo me siento querido. A los otros hay que dejarlos en su callejón de la amargura.
P. ¿Cómo interpreta usted que Carlos Fuentes no se haya manifestado sobre el premio que le han concedido a usted?
R. No sé. Yo tengo una gran admiración por Carlos Fuentes.
P. ¿Este premio va a hacer que usted se concentre más en su trabajo literario y menos en las opiniones políticas?
R. La política para mí siempre ha sido una actividad totalmente secundaria; lo que pasa es que como mis opiniones no coinciden con las de la mayoría de estas personas parecen más notables de lo que son, aunque luego no comentan mi obra literaria. Yo voy a seguir siendo el que fui y el que soy, y pienso seguir dedicando lo mejor de mi tiempo al cultivo de lo que me interesa, que es la literatura, pero esto no significa que voy a prescindir de mi,derecho a expresar mis opiniones políticas.
P. ¿Cuál es el espacio del escritor en una sociedad?
R. No está definido. Yo creo que cada escritor lo va definiendo. Depende de razones subjetivas, depende de las circunstancias políticas, sociales... Si hay una democracia le es más fácil al escritor expresarse que si hay una dictadura. Pero también las democracias modernas a veces son demasiado hostiles a la inteligencia pura. No les interesan mucho los problemas puramente científicos o los problemas puramente artísticos.
P. ¿Cuál es el próximo escritor en español que puede aspirar al Nobel?
R. Hay varios y no quiero ser injusto." El País, 14.10.1990