sábado, 7 de janeiro de 2012

Se eu morrer de manhã



Se eu morrer de manhã
abre a janela devagar
e olha com rigor o dia que não tenho.

Não me lamentes. Eu não me entristeço:
ter tido a noite é mais do que mereço
se nem conheço a noite de que venho.

Deixa entrar pela casa um pouco de ar
e um pedaço de céu
- o único que sei.

Talvez um pássaro me estenda a asa
que não saber voar
foi sempre a minha lei.

Não busques o meu hálito no espelho.
Não chames o meu nome que eu não venho
e do mistério nada te direi.

Diz que não estou se alguém bater à porta.
Deixa que eu faça o meu papel de morta
pois não estar é da morte quanto sei.

Rosa Lobato de Faria, in " Poemas Escolhidos e Dispersos", Roma Editora, Lisboa 1997

1 comentário:

  1. "Diz que não estou, se alguém bater à porta / Deixa que eu faça o meu papel de morta / pois não estar é da morte quanto sei." R. L. F.... - Este poema de Rosa Lobato Faria, que já nos deixou vai um certo tempo indo, ajuda-nos a senti-la presente... A Rosa já se evadiu do nosso estar, embora através da sua obra literária e do seu talento de actriz ainda a sintamos presente, mesmo sabendo que aquele seu tom de voz tão coloquial se vai distanciando na lobreguidão do tempo... Este poema possui algo de deslumbrante, de transcendente, como notícias escritas em bilhete postal vindas do Além do enigma, para onde tende o entardecer das nossas vidas. Estes versos procuram aproximar a nossa habitual evasão etérea e o devaneio do nosso olhar que não se conseguiu fixar, do real cognitivo, presencista a que ainda pertencemos. - V. P.

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