sexta-feira, 19 de abril de 2024

In memoriam

Eugénio Lisboa nos 25 anos de Estudos Regianos.
Sessão celebrativa dos 25 anos de Estudos Regianos que decorreu na Casa Museu José Régio, em Vila do Conde no sábado, 26 de Novembro de 2022. A sessão contou com a presença do Vereador da Cultura da Câmara Municipal de Vila do Conde, Paulo Vasques e da Chefe da Divisão Cultural da Câmara, Marta Miranda. A Presidente do Centro de Estudos Regianos, Isabel Cadete, abriu a sessão com uma palestra sobre José Régio, e seguiu-se a apresentação do número temático da revista Estudos Regianos “A Figura Feminina na Obra Regiana”, por Isabel Pires de Lima, antiga Ministra da Cultura. A sessão foi encerrada por Eugénio Lisboa, o maior e mais dedicado estudioso da obra de José Régio,  com uma magnífica intervenção em que chamou a atenção para o frequente  esquecimento que   cai sobre os grandes escritores  já desaparecidos  apesar do contributo dado pelos respectivos legados para o  engrandecimento da Literatura e do mundo.  

Sessão celebrativa dos 25 anos de Estudos Regianos.
 Eugénio Lisboa está sentado, ao cento,  na mesa.

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Fazer um soneto


O soneto de fazer um soneto
 
Fazer um soneto é saber contar,
mas seria bom que fosse só isso:
o saber contar permite o voar
e o submisso promove o insubmisso.
 
Todas as regras que o soneto tem
são todo o contrário de uma prisão:
a fúria solta que a regra detém
multiplica o poder da emoção.
 
O ar que resiste permite o voar:
a regra que amarra o soneto
é que lhe permite um novo explorar.
 
O preso que obedece a um decreto
sabe usá-lo pra melhor contornar
a cela onde o querem confinar.
                    26.07.2022
Eugénio Lisboa, in soneto , modo de usar, Editora Guerra & Paz, Abril de 2024, p.36
Vale a pena fazer um soneto?

Vale a pena construir um soneto,
sílaba a sílaba, bem contadas,
sem que a medida tenha cianeto
que assassine as palavras aladas?

Um soneto é como uma casa,
se mal calculada, ela desmorona.
Tal como na casa, nada transvasa,
o que a faria algo trapalhona.

Um rigor que acolhe a emoção
e, com elegância, abraça a ideia,
sem se tornar maçadora lição,

não merecerá que o leitor o leia,
com amorosa e séria atenção?
Visto que o rigor é inspiração?
                    22.04.2023
Eugénio Lisboa

quarta-feira, 17 de abril de 2024

A Casa das Tias

A Casa das Tias, desenho a tinta-da-china, de Dana Michaelles

A Casa das Tias

Olho, feita pela Dana
a casa do Alto-Mahé: 
dela , por certo, dimana
memória do que era e é.

Ponho-me a olhar a casa 
que chamávamos " das tias"
e dá-me um golpe d'asa
que me leva aos velhos dias! 

Recordar é adiar a morte
quando olho esta casa,
o passado volta forte
e o frio faz brasa!
                Londres, Dezembro,1994
Eugénio Lisboa

"No Alto-Mahé, no extremo (pouco chic) da Avenida Pinheiro Chagas, ficava a “casa das tias”, as irmãs do meu pai, tuteladas, com mão pesada, pelo tio Tropa, marceneiro habilidoso, dotado de fortes bigodes à Staline e de espessas convicções comunizantes, embora eu nunca tenha averiguado se ele sabia bem o que era o comunismo...
Trabalhava muito e com arte e fazia, com isso, pouquíssimo dinheiro, talvez por escrúpulo em avaliar no seu devido valor a qualidade da sua arte.
A casa do Alto-Mahé, com rés-do-chão e primeiro andar, imortalizada, para nós, num desenho a tinta-da-china, da Dana Michaelles (pintora florentina encalhada em Lourenço Marques), era, a meus olhos de periférico, um palácio mítico, construído, de ponta a ponta, pelo tio Tropa, com contribuição financeira de meu pai e, creio, do meu tio Fernando, irmão de meu pai. Tinha uma imponente – e pesadíssima – porta de entrada, de madeira trabalhada, uma elaboradíssima escada interior, também de madeira, que unia o rés-do-chão ao primeiro andar e, neste, uma varanda com grades de ferro arrebicadamente lavrado. Ainda hoje lá está, maltratada, massacrada, vandalizada, canibalizada, conspurcada... – da última vez que por ali passei, numa das minhas visitas a Lourenço Marques, olhei-a de fugida, com o coração transido, como quem acaba de assistir a uma profanação. A casa das tias era o lugar de peregrinação, que eu e os meus irmãos visitávamos em certas ocasiões, como quem pisa solo sagrado – vivendo nós em residências modestas, do Largo João Albasini ou da Estrada do Zixaxa ou mesmo, mais tarde, da Rua Mendonça Barreto, todas elas sem frigorífico, sem electricidade (excepto a última), sem telefone e sem telefonia (para nós, em Moçambique, “rádio”), a casa das tias parecia ter tudo, incluindo uma telefonia quase do tamanho de um camião. Majestosa, sim, mas, ainda assim, insuficiente para se ouvir, nas ondas curtas, a BBC, em tempo de guerra... "
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula, Memórias - I - Lourenço Marques ( 1930-1947), Editora Opera Omnia, Novembro de 2012. pp.19-20

O clarão de uma estrela-cadente

Leiria, 14 de Fevereiro de 1941
«Nunca hão de dar por estas palavras, como não deram por mim quando os segui  durante algum tempo ,  a ser junto deles em corpo  o que já era em espírito – um irmão. Deixá-lo. A própria solidão do que eu escrever trará à minha emoção o calor e a melancolia que seria difícil  exprimir, e que há-de ser a terra da sua duração.
Eram quatro vultos. Um homem e três mulheres. Um à frente e três atrás. Vinham pela rua fora, em marcha, como sonâmbulos, a tocar uma música que sugeria não sei que vida livre e maravilhosa, com remendos, fome, sol e olhos sempre virgens a olhar o mundo. Uma música lírica e trágica ao mesmo tempo, que inundava a tarde fria de calor e da palpitação de um poema.
À medida que se aproximavam, o cornetim desenhava-se mais nítido nas mãos dele, que caminhava  à frente, e a caixa, os pratos e o bombo tomavam relevo nas mãos delas, que o seguiam.
Ninguém poderá saber jamais se eram todas suas esposas, filhas ou mães. Sílfides intemporais, rufavam, batiam, martelavam e criavam à voltado solista  e do  hino ao triunfo puro que lançava no espaço, uma atmosfera de irrealidade.
Passavam. O próprio chão tremia. Passaram. As próprias pedras pareceram ficar com  saudades.
E quando lá longe,  nos subúrbios, junto do trapézio alado, o silêncio se fez, como que se extinguiu  no céu morto da cidade o clarão de uma estrela-cadente»
Miguel Torga, in "Diário I,  Obras completa de Miguel Torga, Diários (Volumes I a IV", Círculo de Leitores , Março de 2001, p.108

terça-feira, 16 de abril de 2024

Em África , tudo se dilata com o calor...

Em África
por Eugénio Lisboa
" Em África , tudo se dilata com o calor, inclusivamente a dimensão do tempo e do espaço, isto é, há muito espaço e muito tempo. A África é enorme, nunca mais acaba, e os dias vão durando por ali fora e dão tempo para tudo e ainda sobra tempo. Trabalha-se devagar, mexemo-nos devagar, amamos devagar ( nem sempre). A vida, ali, dura mais, mesmo quando dura pouco.
Quando as férias grandes começavam, tínhamos, à nossa frente, uma vasta planície de tempo a preencher, mesmo que fosse a não fazer nada. A partir do 5º ano do liceu, eu possuía já uma pequena biblioteca e ia  comprando um outro livro que namorava longamente, antes de o poder comprar. Mas, até ao terceiro e mesmo ao 4º ano, a leitura não era muito variada. Lera alguma coisa, mas não encontrara ainda nenhum dos meus grandes amores literários. O Garrett  o Herculano e o Júlio Dinis tinham-me cativado muito, mas não lhes chamaria "grandes amores literários". 
(…)
Julgo que foi , por esta altura, que meu pai me trouxe, completamente amarfanhado pela água que apanhara no porão do navio, entre Lisboa e Lourenço Marques, na edição da " Inquérito", em belíssima tradução de José Marinho, o romance de Stendhal ,  Vermelho e Negro ( Le Rouge  et le Noir , no original).  Foi, em mim, um autêntico terramoto! Apaixonei-me perdidamente pela Senhora de Rênal e foi um amor que nunca me abandonou : a Senhora de Rênal ficou sempre a pertencer ao meu mundo mais privado. Cá fora, na arena, eu andava com fumaças de dominar e meter na ordem as Matildes de la Mole que inundavam o mercado...Mas as Matildes eram só para o toureio; a Senhora de Rênal era para o amor de facto. Nada de confusões! Li, reli, tresli o livro de Stendhal, com uma paixão nunca saciada. Nenhum outro livro me pareceu viável , imediatamente depois daquele.. Eu bem pegava neles, bem tentava lê-los: tinham todos o horrível defeito de não serem o Vermelho e Negro. Como se podia ser outra coisa? Algo de semelhante se passaria, pouco depois, quando li, pela primeira vez, em tradução portuguesa, todo o teatro de Oscar Wilde. Foi um fascínio deparar, pela primeira vez, em todo o seu esplendor, com a arte da conversação. Como se poderia não falar assim? Como era possível continuar a viver, sem se possuir,  pelo menos, o brilho dos lordes conversadores do teatro de Wilde? Valia a pena viver, se não se podia ter tal brilho, na conversa de todos os dias ? Ser menos do que Oscar Wilde era programa de vida que se visse? O brilho, àquele nível, seduz mas também angustia. É um valor que se não absorve pacificamente ou que eu, pelo menos, não absorvia pacificamente. Nas conversas com colegas e familiares, apetecia-me ensaiar o paradoxo faiscante. Demolir tudo, desassossegar aquela sociedade amolengada e conformista, sob o calor subtropical..." 
Eugénio Lisboa, in  Acta Est Fabula, Memórias - I - Lourenço Marques ( 1930-1947),  Editora Opera Omnia, Novembro de 2012,  pp.95, 123, 124,

segunda-feira, 15 de abril de 2024

O meu mais belo começo de romance

Eugénio Lisboa

 O MEU MAIS BELO COMEÇO DE ROMANCE 
por Eugénio Lisboa

"Sempre pensei que o destino de um romance se decide na frase que lhe serve de começo. São justamente célebres e inesquecíveis os começos de Le Rouge et le Noir, de La Chartreuse de Parme (ambos de Stendhal), de Ana Karenina ( Tolstoi) ou de Du Côté de Chez Swan (de Proust). Podia dar muitos outros exemplos. “Todas as famílias felizes se assemelham mas cada família infeliz é-o à sua própria maneira”,dizia Tolstoi, a abrir a Karenina – e logo nos deixa sonhadores: aconchegamo-nos melhor no sofá, para nos prepararmos, com delícia, para as soberbas infelicidades que se anunciam... Como vai ser interessante! Com um começo destes... Ou então, isto: “No dia 15 de Maio, o general Bonaparte fez a sua entrada em Milão, à frente daquele jovem exército que acabava de atravessar a ponte de Lodi e de anunciar ao mundo que, depois de tantos séculos, César e Alexandre tinham um sucessor.” Que leitor pode deparar com isto sem sentir que se levanta do chão? Sem sentir um mundo prenhe de promessas que o grande romance de Stendhal – La Chartreuse de Parme – não irá senão confirmar e reconfirmar ad omnia saecula saeculorum? Régio costumava dizer, em conversa, que quem encontra um título encontra um livro. A minha tese pode ser outra: quem encontra um bom começo encontra um bom livro. Tive sempre receio de começar um livro, um artigo, um ensaio, um poema, sem ter a prévia sensação de que achara, para eles, um bom começo ou, para empregar uma expressão popular, de que entrara com o pé direito. Hemingway tem começos memoráveis e eu imagino o trabalho e as tentativas sucessivas que ensaiou até chegar a começos de uma simplicidade pungente, escorrida e trágica, como são os de tantas das suas célebres narrativas. 
Ando agora a agenciar munições para umas memórias1 que quero escrever antes de, para sempre, fechar a oficina. Vou inventariando acontecimentos, emoções, sítios, pessoas, datas, encontros, ideias, desencontros, alegrias, tristezas, esperanças, desilusões, descobertas... Procuro reerguer, com o vigor que me for possível, todo um mundo interior que gostaria de tornar importante, não por eu ter estado nele, mas por ele ter estado em mim – eu, veículo, sem importância, de magias que são importantes. Como me é peculiar, começou por me devorar a angústia de encontrar um bom começo. E logo me ocorreu o que para mim tem sido o mais belo começo de romance, aquele que, nos meus catorze ou quinze anos, me agarrou para sempre e me grudou ao seu encanto anunciador de delícias-a-haver: refiro-me à primeira frase, do primeiro capítulo do romance de Stendhal, Le Rouge et le Noir : “A cidadezinha de Verrières pode ser considerada uma das mais lindas do Franco-Condado”. Este acorde, em que a simplicidade rivaliza com a beleza premonitória, gravou-se para sempre no meu espírito e no meu coração. E fiquei sempre convencido de que só ele teria competência para me levar até à minha insaciada paixão pela Senhora de Rênal. Permaneceu em mim, espécie de canto profundo e mozartiano, propiciador de tudo quanto na vida há de mais fundo, de mais belo e de mais trágico. Pensei, portanto, que uma pequena paráfrase dele me garantiria, melhor do que qualquer outra alternativa, o começo (auspicioso) das minhas memórias. Ficará assim: “A cidadezinha de Lourenço Marques pode ser considerada uma das mais lindas do continente africano.” Assim amparado na bengalinha sortílega do que considero o mais belo começo de romance, espero salvar do esquecimento rápido, não o total das minhas memórias, mas, ao menos, a sua primeira frase. "
1 - Eugénio Lisboa publicou as memórias em sete volumes, entre Novembro de 2012 e Novembro de 2017. (N.O.)

domingo, 14 de abril de 2024

Ao Domingo Há Música

Hoje , este espaço é totalmente preenchido com a reposição de um registo musical, extraído de uma crónica de Eugénio Lisboa, dedicada ao seu filho João Luís Lisboa.
Amante de Música, Eugénio Lisboa tinha a sensibilidade justa para tecer palavras que ilustrassem qualquer peça ou voz que tenham exercido sobre ele o tal encanto, êxtase,  a sedução profunda que leva aos primórdios, àquelas grandes emoções primárias e fundadoras, de que os “sofisticados” têm tanta vergonha.
Era assim Eugénio Lisboa, um escritor maior , multifacetado e sem pejo de dizer num franco falar , ao jeito dos verdadeiros génios da Literatura. 

June Tabor
por Eugénio Lisboa
Ao João Luís
"Não gosto de escrever sobre artes que não pratico e sobre as quais tenho uma educação à la diable, isto é, muita frequentação e pouco estudo sério. Tenho visto muita pintura, escultura e desenho, como tenho ouvido muita música, e até possuo uma discoteca considerável. Mas não tenho educação musical, num sentido técnico.
Tenho obsessões e vaidades como, por exemplo, possuir os 180 CDs, que compõem. na edição da Philips, a obra completa de Mozart. Tenho, neste sector, um gosto ecléctico: música clássica, jazz, música folclórica (alguma), fado, música dos Beatles, do Zeca Afonso, da Edith Piaf, do Jacques Brel, do Regiani, da Béatrice Arnac e tutti quanti.
Por intermédio do João Luís [ Lisboa, declaro aqui o meu interesse], cheguei à cantora britânica June Tabor, que tenho ouvido, naquele estado de “bestialidade espiritual, que é o êxtase musical ou místico”, para usar uma expressão forte de Montherlant, ao referir-se ao “canto profundo” do sul de Espanha e do Norte de África, de onde é oriundo.
Não tenho, repito, educação musical técnica, embora tenha um ouvido bem treinado a ouvir centenas se não milhares de horas de música. Não comentarei por aí além a qualidade das baladas cantadas por June Tabor; apenas direi, candidamente, como elas agem em mim. Com Tabor, estou um pouco à vontade porque ela, como eu, também não tem o que se chama educação musical. Usa o ouvido, a imaginação, a emoção, a obstinação, o talento e a alma. Estas coisas acontecem.
Em suma, não irei pretender.(...)
Vou, portanto, dizer duas ou três coisas singelas sobre esta cantora de sedução prodigiosa, que nos “apanha” por algo de profundo e de definição delicada.
Voltei, agora, a ouvir, dela, dois discos: Ashore (2011) e A Quiet Eye (1999). Dizem-me que a actual voz (a de Ashore), quase “rouca”, cheia de graves, foi uma chegada: que, em canções muito mais antigas, predominavam os agudos. A voz actual, profunda, às vezes quase áspera, arrastada, lembra-me o “cante jondo” (canto profundo) espanhol, herdado dos cantores do Norte de África (do século X ao século XV). Montherlant, obstinado “voyageur traqué” naquelas paragens, onde o deserto predomina e o sol queima, dizia ser o “cante jondo” “uma manifestação da alma, como o seu nome indica, e não um exercício de virtuosidade.” Virtuosidade técnica tem-na, por certo, Tabor, mas não é isso que nos toca ou simplesmente impressiona.
O que vem até nós é a alma profunda dos mistérios, abismos e insídias do mar, as suas histórias de “naus catrinetas” ou assim, autênticas “histórias de pasmar”. Falando sempre do “canto profundo”, insiste Montherlant, obviamente tocado: “Regras, seja, mas, antes de mais nada, uma pessoa humana.” Na voz, interessa mais que seja expressiva, do que seja ampla... A voz de Tabor é superiormente expressiva. Os críticos de língua inglesa falam, a propósito desta cantora, de “voz arrepiante” que “transmite um oceano de emoções sem qualquer artifício” (The Weekend Australian), ou, a propósito, precisamente, do album Ashore, de “colecção profundamente comovente de histórias do mar.” A tónica sempre posta – e bem, a meu ver – na expressividade, na alma e não no teatro, na virtuosidade, na técnica. Ouvir canções como “ The Grey Funnel Line”, “Shipbuilding” ou “The Great Selkie of Sule Skerry”, entre outras, mexe connosco até profundidades insuspeitadas.
E volto ao “canto profundo” e aos emocionados comentários do severo Montherlant: “ No «canto profundo»”, nota o autor de Service Inutile, “cada um lança dentro de si como que uma tubagem de bomba, para chegar à toalha subterrânea da alma; cada um lança-a mais ou menos longe, sem chegar à água da alma; enfim, aparece alguém que a lança a tal profundidade, que a água da alma é atingida, sobe e aparece na voz.” É o caso da cantora June Tabor, que eleva as canções “até novos níveis impossivelmente altos” (Sydney Morning Herald). Cantando, em “Shipbuilding”, versos como os dilacerantes “Diving for dear life / When we could be diving for pearls”, June Tabor ascende a cumes da expressividade e da emoção, como raramente teremos ouvido em tempos recentes. Mesmo ao preço de alguma candura e de uma mais ou menos detestada “naturalidade”. Com esta voz, com estes textos, com esta expressividade removente, June Tabor leva-nos, sem vergonha, aos primórdios, àquelas grandes emoções primárias e fundadoras, de que os “sofisticados” têm tanta vergonha. Hoje, fala-se minimalisticamente do que se sente em pequenina dimensão. Tabor vai ao fundo dos tempos, quando não havia vergonha das emoções em grande e a nu.
Montherlant, sempre crítico da França, fazia fogo frontal na direcção dessa grande “conspiração francesa contra a simplicidade e o natural.” E dizia, escarninho, que o mot d’ordre da nata intelectual gaulesa era: “nada de lirismo, nada de fantasia, nada de visão directa da realidade, nada de expressão directa do que se sentiu, tudo isso é ridículo e chocante: um povo, ontem com peruca, hoje com certificado de estudos, não consegue suportá-lo,”
Gostaria de terminar, dizendo que esta voz grave e cheia de graves, ocasionalmente quase beirando a “rouquidão”, suspensa, por vezes “travada”, fortemente apelativa, sugerindo distâncias, sóis e abismos, melancolias e lutas me comoveu tanto como me comove o “canto profundo” , que Montherlant celebrou." 
Eugénio Lisboa, in JL.

 
June Tabor, em  Don't Think Twice, com Huw Warren ao piano
 
June Tabor, em  Shipbuildingrack 5, do  Ashore album (2011, Topic Records Ltd.). Elvis Costello escreveu esta canção.
 
 June Tabor (live), em Grey Funnel Line .
 
June Tabor, em Finisterre, do álbum "An Introduction to June Tabor".

sábado, 13 de abril de 2024

Brincando (a sério) aos editores

 

Brincando (a sério) aos editores
por Eugénio Lisboa
 
I’ll publish, right or wrong.
          Lord Byron
 
Publication is the male equivalent
of childbirth.
          Richard Aclan
 
“(…) É sobretudo, de uma das áreas da nossa actividade [na Anglo Portuguese Foundation] – a edição de livros – que quero hoje aqui falar. E foi nela, servindo-se, é claro, do apoio dos meus conhecimentos de literatura e cultura portuguesas, que Kim Taylor terá deixado marca mais duradoura. Duradoura? Já iremos falar nisso. Kim tinha bons conhecimentos sobre a «fabricação» de livros e sobre os meandros do seu marketing. Sabia formatá-los com o apoio competente e sensível do seu irmão – sabia negociar protocolos com as casas editoras (e fê-lo chegando a um acordo com uma das melhores editoras do país, a Carcanet Press, de Manchester), em tudo pondo uma atenção, uma determinação e uma meticulosidade que rapidamente o faziam passar da fase do sonho à da realização. Tudo ia acontecendo, num protocolo teimoso de formiga que, grão a grão, enche o seu celeiro.
O problema era escolher o nosso catálogo. Publicar o quê? Nisto, eu e o Kim alinhávamos bem no mesmo projecto: obras de qualidade, sim, obras representativas, claro, mas não obras boas apenas para uns happy few, que um público mais alargado e um pouco menos sofisticado rejeitasse. Poesia, ficção, história, grandes clássicos e clássicos modernos. Em suma: alta qualidade que não espantasse a caça. Estávamos bem conscientes da dificuldade dilemática que Santayana tão bem emblematizara, nestes termos: “A cultura acha-se nos cornos deste dilema: se nobre e profunda, é só para raros; se mais comum, torna-se insignificante.” Nós visávamos o nobre e profundo que se não tornasse, por outro lado, inacessível: tanto em antigos como em contemporâneos. Julgo que a nossa lista inicial de grandes escritores traduzidos não serviu mal este propósito: Camões – o épico e o lírico – numa nova tradução de Keith Bosley, omnívoro tradutor de várias línguas, incluindo o finlandês…, Fernão Mendes Pinto, Eça de Queirós (quase toda a ficção, com uma primeira e admirável tradução de Alves & Cia), Fernando Pessoa (incluindo o Livro do Desassossego que, nesse mesmo outono de 1991, viu quatro versões em inglês, três em Inglaterra e uma nos Estados Unidos, e uma volumosa antologia de poesia e prosa, organizada por mim e por Kim Taylor, incluindo, em tradução inglesa, o famoso ensaio de Octavio Paz sobre o encenador dos heterónimos, além de contribuições de Tabucchi, José Blanco e outros), Miguel Torga (Contos e Novos Contos da Montanha e A Criação do Mundo), José Régio (Histórias de Mulheres), Jorge de Sena (Sinais de Fogo), José rodrigues Miguéis (Páscoa Feliz), David Mourão-Ferreira (Um Amor Feliz), uma substancial antologia do conto português dos séculos XIX e XX, por mim organizada e incluindo contos de Eça, Fialho, António Patrício, Fernando Pessoa, Irene Lisboa, José Régio, Rodrigues Miguéis, Domingos Monteiro, Branquinho da Fonseca, Miguel Torga, Joaquim Paço d’Arcos, Manuel da Fonseca, José Marmelo e Silva, Maria Judite de Carvalho, David Mourão Ferreira, Herberto Hélder e Mário de Carvalho, e também (embora não com o meu voto), um romance de Saramago… [o meu voto contra teve sobretudo este significado: Saramago era já um nome comercial, que não precisava do apoio de uma organização como a nossa, que devia reservar os seus esforços e dinheiro, para promover autores que, de outro modo, dificilmente encontrariam editor. Poder-se-ia perguntar se Camões e Pessoa estariam nesta caso: de Camões, quisemos traduzir peças ainda não traduzidas ou promover nova tradução de outras já traduzidas; de Pessoa, quisemos incluir textos em prosa e uma melhor tradução de poemas já anteriormente traduzidos.] Mas não nos ficámos por traduções de obras de ficção e poesia, de consumados autores portugueses: obras de história e ensaio tiveram também lugar: três clássicos de Charles Boxer (The Portuguese Seaborne Empire, The Christian Century in Japan – 1549/1650 e The Golden Age of Brazil), o fascinante livro de Silvio Bedini, The Pope’s Elephant, que conta a saborosa história da oferta de um elefante feita pelo rei D. Manuel ao papa Leão X, o clássico de Maurice Collis, The Grand Peregrination, sobre a vida e época de Fernão Mendes pinto, uma bela tradução de longos excertos da própria Peregrinação, do grande aventureiro português, e o 2º volume do livro de Rose Macauley, They Went to Portugal Too, cujo 1º, publicado em 1946, utilizara apenas metade do material textual disponível, devido ao, então, rigoroso racionamento de papel.
Nem todos estes livros foram lançados no mercado durante o período em que Kim Taylor foi director da Gulbenkian, em Londres: reformado em 1989, permaneceu, no entanto, até 1995 (ano em que também eu saí de Londres), como «executive editor», de parceria com Michael Schmidt, da Carcanet Press, das séries «Aspects of Portugal» (capa dura e sobrecapa de papel) e «From the Portuguese» (série de traduções em formato de livro de bolso, de capa macia, dedicada a autores portugueses do século XX). Já fora dos escritórios da Gulbenkian, as suas reuniões comigo – Michael Schmidt vivia em Manchester e, em qualquer dos casos, pouco interferia nas séries – tinham lugar, ora na embaixada – onde suámos sangue, suor e lágrimas sobre a maciça e meticulosa antologia que fizemos de Pessoa – A Centenary Pessoa – ora num minúsculo pied-à-terre que o Kim possuía em Bloomsbury, no nº 22 da Conway Street, London W1, a dois passos da Livraria Dillon’s e no centro do universo outrora habitado ou simplesmente frequentado por Virginia Woolf, Lady Ottoline Morrell, Bertrand Russell, Aldous Huxley, D. H. Lawrence e tantos outros que são hoje do património cultural inglês e universal. Eu chegava por volta do meio dia, sentava-me e ia manipulando papéis e tomando notas, enquanto o Kim, que mal cabia no espaço disponível do seu habitáculo, se debruçava sobre o fogão, preparando, com uma mestria fácil e despretensiosa, a refeição que, regada sempre com um vinho bem escolhido, servia de motor de arranque para a nossa tarde de trabalho. Foram momentos inesquecíveis e famosamente produtivos. Kim tinha sentido de humor e afinadíssima cultura, a um tempo profunda e discreta, a que me encostava sem ter muito a impressão de que me era imposta. Conversávamos e trabalhávamos e os livros, lentamente, iam-se construindo. Nem sempre estávamos de acordo: eu verguei-me, com dificuldade, à reimpressão de certas traduções de Eça, que me pareciam ou levianas (O Primo Basílio) ou francamente medíocres (O Crime do Padre Amaro), mas acabei por ceder ao sentido de pragmatismo ou de urgência – ou ambos – do Kim. A mim, em particular, deu-me um singular prazer trabalhar na antologia de contos (em dois volumes) e na antologia pessoana. Quanto a esta última, não foi pequeno o orgulho que senti ao ler as 6 ou 7 páginas que George Steiner lhe viria a consagrar na prestigiosa revista americana The New Yorker. Reeditar Os Maias ou A Ilustre Casa de Ramires (que levou Jonathan Keates a presumir que Flaubert teria assassinado para escrever algo tão bom), fazer verter admiravelmente para inglês – e pela primeira vez – uma das mais singulares ficções de Eça – Alves & Cª - trazer para a língua de Swift as belíssimas Histórias de Mulheres, de Régio, ou a Páscoa Feliz, de Miguéis, ou os Sinais de Fogo de Jorge de Sena – são privilégios que nos enchem de um gozo profundo, mesmo quando as instâncias oficiais deitam sobre o caso um olho negligente e vagamente enfastiado. A verdade é que tanto o Kim como eu não estávamos ali a trabalhar, naquelas tardes sossegadas da Conway Street ou nalgumas manhãs alongadas de Belgrave Square, para benefício ou contentamento de quaisquer entidades oficiais ou outras: profundamente egoístas, no sentido mais nobre do termo, fazíamos o que fazíamos, «for the sake of it», como dizem os britânicos ou, se preferirdes, pelo gozo de fazermos – se possível, bem – aquilo que fazíamos. Já o velho filósofo americano Ralph Waldo Emerson se apercebera disso, quando dissera: “A recompensa para uma coisa bem feita é termo-la feito.” Os livros iam-se construindo, numa língua bem diferente daquela em que tinham sido concebidos, numa obstinada e saborosa lentidão – um dia haviam de ser obra concluída e iriam provocar, se tivessem sorte, a atenção de uma gente menos habituada àquela literatura diferente e oriunda de paragens menos exploradas. Lentamente… O tempo que levou a peneirar, a escolher, a fazer traduzir, a rever a tradução, a «encher» de depoimentos, de prefácios, de tábuas informativas, de material adjacente e necessário, essa bela antologia de Pessoa que legámos à língua inglesa: ainda recentemente, um grande editor português me veio pedir que a «vertesse» para português! Ela teve já duas reimpressões em «paperback» e há-de levar «mais Pessoa» a leitores de língua inglesa do que, durante muito tempo, se julgou possível… Tudo feito com teimosia e lentidão. Há uma passagem belíssima, de um texto da grande pintora americana Georgia O’Keefe, que eu aqui gostaria de transcrever, como homenagem suprema à eminente e empenhada contribuição de Kim Taylor para a divulgação da cultura portuguesa no Reino Unido. Dizia ela: “À tarde, eu saio para o deserto e passo horas a ver o sol descer, só pelo gozo imenso que isso me dá, e todos os dias volto a sair para de novo olhar para ele. Desenho um bocadinho e fica ali um pouco de pintura e assim os dias vão correndo.” Também connosco, todos os dias ficava ali um bocadinho de livro e assim os dias iam passando, até um dia haver, finalmente, um livro. A lusofilia, a de Kim, ia assim fazendo crescer, simultaneamente, um livro e uma amizade.
Peço licença, para transcrever, traduzindo-as, por me parecerem de interesse, algumas breves passagens dos comentários que Kim Taylor recentemente me enviou, acerca do modo como «viveu» a construção de alguns dos livros que editámos:
  1. O livro A Centenary Pessoa foi, de todos o que mais me agradou, na série «Aspects» [of Portugal]. Investiu-se, como se lembra, um grande volume de trabalho na sua criação e composição. A minha única mágoa é a tradução de Bosley da «Tabacaria», embora fiel, não competir com a versão mágica de Suzete Macedo, mas a verdade é que não podíamos insistir nessa intromissão particular no trabalho cuidadoso de Bosley. O design do livro – em grande parte, obra do meu irmão – é excelente.
  1. O livro de Rose Macauley [They Went to Portugal Too] tem, é claro, um lugar muito especial no reino dos meus afectos. Publicar tanto material «novo» de um tal autor foi uma oportunidade rara. Por via dele, pude conhecer, em visitas repetidas, a encantadora Susan Lowndes. As ilustrações funcionam bem e o livro é excepcionalmente belo.
  1. A Peregrinação exigiu uma enorme quantidade de trabalho editorial. A tradução original de Lowery de passagens seleccionadas era vívida e legível mas, como miscelânea, não dava uma impressão adequada do original maciço. Felizmente, a edição completa de Rebecca Katz tinha aparecido poucos anos antes e foi-me possível fazer resumos narrativos de ligação. O produto final é um texto digno.
  1. Os livros de Boxer eram, é claro, dignos de serem reeditados. Penso que as novas ilustrações, os frontispícios, as sobrecapas, etc. os tornaram adicionalmente atraentes. Incidentalmente, os numerosos arquivos e museus de Portugal que providenciaram as inúmeras ilustrações para os livros da série nunca, em caso nenhum, exigiram pagamento – o mesmo não se podendo dizer das fontes de informação inglesas e francesas. Penso que The Golden Age of Brazil e The Christian Century in Japan são do meu especial agrado.
  1. The Pope’s Elephant foi uma EXPERIÊNCIA! Michael Schmidt tentou liquidar o projecto depois de termos gasto horas nele, para grande fúria de Bedini. O manuscrito original estava escrito em americano e necessitava de uma grande dose de tradução para inglês (Bedini mostrou-se encantado, quando lhe fazíamos sugestões) e ele [Bedini] tinha tendência a presumir um pouco razoável conhecimento da história europeia, da parte dos seus leitores. As suas ilustrações eram uma confusão. Meu irmão e eu passámos 10 dias no meu apartamento em Londres tentando dar àquele fardo mal amanhado uma configuração viável, com trabalho editorial a acrescentar… O produto final é um tributo ao efeito que os Descobrimentos tiveram no alargamento da consciência europeia. O livro vendeu-se particularmente bem na América e veio a tornar-se um «paperback» da Penguin nos Estados Unidos.
Salto algumas passagens do depoimento de Kim, mas não resisto às palavras finais da sua carta recente:
“Olhando para trás, quão feliz estou por termos embarcado nas duas séries. Michael Schmidt não foi exactamente um colaborador entusiástico (os seus interesses situavam-se sobretudo na poesia e na vanguarda) e quanto a Ben Whitaker [sucessor de Kim na Gulbenkian]… Contudo, trabalhar nos livros contigo, querido Eugénio, foi para mim um grande e duradouro prazer. Os livros na minha estante continuam a significar um duradouro tributo a anos de amizade e a uma colaboração que foi sempre confortável, bem humorada e criativa e, frequentemente, puro deleite!
Afectuosamente
Kim”

Citei esta última passagem porque ela fala por si e porque me aquece o coração. Mas entristece-me também um pouco, porque nela figura, por duas vezes, o adjectivo «duradouro». Se o adjectivo fica bem – e é justo – quando qualifica o prazer e o tributo, deixa-me, no entanto, melancólico pelas dúvidas que me surgem quanto à durabilidade do nosso investimento. Dizia Valéry que o problema com o nosso tempo é que o futuro já não é o que costumava ser. Quando Kim e eu trabalhávamos na nossa sementeira, parecia-nos que investíamos num futuro não duvidoso. Hoje, porém, tenho dúvidas. Um empreendimento destes não é concebido para um período limitado de uma dúzia de anos: precisa de continuidade que o prolongue e, de tempos a tempos, ressuscite os títulos já esgotados. É, por assim dizer – e perdoem-me a hipérbole – um projecto para a eternidade. Infelizmente – e estas coisas têm que ser ditas – os nossos governantes não acreditam a sério na cultura, porque nem sequer a compreendem – nem a ela, nem ao seu valor que vai muito para além do que é em si. Hoje, em Londres, of all places, o posto de conselheiro cultural encontra-se extinto. Um ministro dos negócios estrangeiros, quando quis ver-se livre de uma titular do pelouro cultural [alegadamente] pouco produtiva, mas ainda a meio do contrato, não achou melhor maneira de a despedir, sem a indemnizar, do que recorrer ao expediente radical de extinguir o lugar. Faço ideia do que devem hoje pensar os altos funcionários do Foreign Office e do British Council. Extinguir um cargo destes numa capital como Londres é, no mínimo, um gesto terceiro-mundista, sem ofensa para o Terceiro Mundo. Estou ciente de que estas palavras são duras, mas creio que ficam à proporção da irresponsabilidade da decisão ministerial.
Faz pena. Porque, sem continuidade que assegure ao esforço de poucos alguma garantia de presença, investimentos como os de Kim Taylor e também o meu correm o risco, para dar a uma frase célebre de Churchill a merecida amplidão metafórica, de vir a ficar soterrados “nos ingratos desertos da Mesopotâmia”. Assim seja, se assim for. Fica-nos a esperança de que, num dia qualquer de um futuro incerto, um leitor imaginário, vagueando por uma biblioteca ou navegando na internet, descubra alguns dos títulos com que, durante uma década e meia, o Kim Taylor, com algum acompanhamento meu, tentou mostrar aos britânicos que a cultura portuguesa existe e vale a pena ser conhecida.”
Eugénio Lisboa , in “L. C. Taylor: malhas que a lusofilia tece”, texto  apresentado num colóquio na Universidade de Aveiro, em 2012).